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    Michel Laub

    O apartheid das novelas

    14/02/2014 03h02

    Sempre dou um desconto quando ouço que a TV era melhor antigamente. O passado só existe sob o filtro egocêntrico das lembranças, que confundem a glória de nossa biografia com o esplendor da história do mundo. E a análise não pode desprezar o contexto. O "padrão Globo de qualidade" dos anos 1970/1980, por exemplo, tinha menos apelação porque havia menos concorrência.

    Não custa lembrar, também, que a menor diversidade se devia ao controle técnico e político de uma ditadura. A nostalgia da era de ouro precisa considerar o pacote inteiro: sob o ponto de vista das concessões de quem mandava, uma coisa (liberdade parcial e inteligência em áreas menos sensíveis, como as novelas) era vinculada à outra (censura e oficialismo no que importava de fato, o noticiário).

    Dito isso, não dá para negar que a coisa objetivamente piorou. Veja-se o caso da recém-encerrada "Amor à Vida". O folhetim de Walcyr Carrasco integra uma longa linhagem que reflete e por vezes é vanguarda em debates da sociedade —o divórcio em "Escalada" (1975), a emancipação feminina em "Malu Mulher" (1979), a corrupção em "Vale Tudo" (1988), a totalidade da experiência humana nos enredos de Glória Perez.

    Será ótimo, nesse sentido, se o beijo entre dois homens exibido no último capítulo, há duas semanas, aumentar a tolerância à diversidade sexual —algo urgente num país em que gays ainda são agredidos nos rincões e na avenida Paulista.

    Ocorre que a análise não pode se resumir à sociologia. Quando deixamos de lado a boa vontade com scripts de interesse público —além da causa gay, "Amor à Vida" falou sobre autismo, alcoolismo, câncer de mama, lúpus, Aids, violência conjugal, casamento entre religiões diferentes—, o que sobra das novelas contemporâneas é uma dramaturgia que atira para todos os lados e com frequência não faz sentido.

    Temos outro pacote agora, a ser igualmente considerado no todo: a maior e bem-vinda oferta de canais e programas —no cabo, na Internet, em mídias como o Netflix— criou um apartheid estético. Boa parte da audiência qualificada abandonou a TV aberta.

    Já o grosso da população, bem, que se contente com bebês jogados na caçamba, um ex-quase-homem-bomba arrependido ("percebi que a guerra atinge pessoas indefesas, crianças") e, como apontou Mauricio Stycer, sugestões de leitura inesquecíveis ("ganhou o prêmio Jabuti. Essa sim é uma bela maneira de viver. Agora, você! Fica tentando dar golpes em meninas ricas!").

    Da constatação surgem duas perguntas. A primeira é se nosso entretenimento de massas não pode ser um pouco melhor. As séries americanas provam que dá para bater recordes de audiência com produtos folhetinescos altamente sofisticados. A tradição das novelas é outra, é verdade, e existem limitações por causa de horário, formato e patrocinadores, mas não estou pedindo o tom e a densidade de "Breaking Bad". Bastaria que um produto de qualidade como "Avenida Brasil" (que foi bem de ibope, por sinal) deixasse de ser exceção.

    A segunda pergunta é se não há uma crueldade paternalista na forma como lidamos com o tema. Tenho amigos inteligentes que ainda acompanham novelas, mas o modo comum desse tipo de audiência é o do consumo distanciado ou irônico. A sensibilidade proposta pelo texto não os atinge de igual para igual: ou se olha a trama de cima, para "saber o que as pessoas estão vendo", ou se assiste por um personagem/ator/atriz sexy ou pitoresco(a), ou se deixa a TV ligada enquanto se cozinha ou conversa, ou se ri da tosquice geral.

    Aliado a problemas de educação, o apartheid estético integra a lista nacional das desigualdades que se retroalimentam. Se a elite fala apenas para a elite, a maioria fica reduzida a destinatária de lições de moral e cívica no principal (senão único) produto de ficção que consome. O gosto médio continua sendo o que é. Quem está na base da pirâmide cultural (logo, social) ali se mantém.

    Mudar o quadro pode não ser fácil. Mas, com os profissionais de ponta que trabalham na TV, quem sabe custe apenas uma escolha: tentar dar ao público o que ele ainda não sabe que quer. Apostar que as pessoas podem ser desafiadas e tratadas com inteligência. E que, como os costumes da sociedade que integram, à frente ou a reboque de novelas, são capazes de evoluir.

    michel laub

    Escreveu até julho de 2015

    É escritor e jornalista. Publicou seis romances, entre eles "Diário da queda" (2011) e "A maçã envenenada" (2013).

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