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    Michel Laub

    Três Carnavais no Rio

    28/02/2014 03h02

    1. Há um trecho de "A Menina Sem Estrela", talvez o melhor livro de memórias já publicado em português (Companhia das Letras, organização de Ruy Castro), em que Nelson Rodrigues comenta o Carnaval de 1919: "De repente, da noite para o dia (...), toda nossa estrutura íntima fora tocada, alterada e, eu diria mesmo, substituída".

    O dramaturgo, romancista e cronista se refere ao trauma da gripe espanhola, durante a qual a cidade foi devastada pela "humilhação dos cadáveres". Para quem sobreviveu e foi à festa, as convenções sociais anteriores pareciam não ter mais sentido. "Na sexta-feira", continua o texto, "isto aqui era o Rio de Machado de Assis; e na manhã seguinte (...) houve uma obscenidade súbita, nunca vista".

    Daria para dizer que ali nasceu a capital rodriguiana, na qual o "desabamento de pudores" se manifesta na tragicomédia da vida privada —adultério, incesto, pactos de morte, confissões trêmulas entre paredes de subúrbio.

    É como se, para Nelson, o passado não fosse a escravidão e o fim do império retratados pela ironia de Machado (ou pelo naturalismo de Lima Barreto), e sim o tempo mítico da "alma imortal" que paira sobre o mundanismo e a decadência.

    Escorada num vasto catálogo de obsessões, que vão da nudez ao pão com manteiga, do bordel de normalistas aos "seres que apodrecem em chagas" nos pátios de milagres, passando por tias, padres, velórios, professoras de primário e Otto Lara Resende, essa nostalgia peculiar é imbatível como arte. Mas começa a soar datada como representação sociológica diante do que veio na sequência, ali pela virada para os 1960.

    2. Como efeito, em paralelo à mudança do poder para Brasília e à ditadura que duraria duas décadas, a tradução ficcional do Rio passa a exigir um realismo mais cru, que se debruça sobre os tiroteios pouco românticos nas favelas, a tortura nada caricatural das delegacias, os anônimos que eliminam uns aos outros por "comida, boceta e cobertor".

    Morre a cidade de Nelson, surge a de Rubem Fonseca, cujo primeiro conto do primeiro livro, "Os Prisioneiros" (1963), é —coincidência— uma história passada entre a sexta-feira e a Quarta de Cinzas. Chama-se "Fevereiro ou Março", e o protagonista faz parte de um bando que pretende distribuir "um Carnaval de porrada" e acabar com "tudo que é bloco de crioulo".

    Em "Os Prisioneiros", como em "A Coleira do Cão", "Feliz Ano Novo" e "O Cobrador", livros de Fonseca hoje publicados pela Agir, havia pouco espaço para a sutileza machadiana ou o moralismo que lhe herdou a coroa.

    Talvez porque não houvesse mais ideias a ponderar nem lados a escolher. O horror totalizante, cujas razões econômicas ou individuais estão muito além do que ensinam os manuais da universidade ou da polícia, é o personagem de fundo de uma ficção largamente admirada e imitada, que reinou absoluta até pelo menos 1995 —ano da última coletânea memorável do autor, "O Buraco na Parede".

    3. De lá para cá, o panorama literário —como o sociológico— é mais fragmentado e confuso. O Rio continuou mudando, houve outros Carnavais no caminho, mas é possível que nenhum venha a ter a importância histórica do que começa hoje.

    A festa está cronológica e simbolicamente entre os primeiros protestos e a Copa. Há menos de um mês, Santiago Andrade foi assassinado. Linchamentos e leis antiterrorismo entraram na pauta. Na sequência virão as urnas e a Olimpíada.

    Uma das tarefas possíveis da ficção é dar conta da realidade. Nos últimos 20 anos, em relação a passado e presente da capital fluminense, ela conseguiu isso em momentos raros. O mais notável é "Cidade de Deus", de Paulo Lins (1997).

    Mas há outra urbe além da favela, um ajuntamento provinciano e globalizado, de civilização e barbárie, que pode ser o epicentro —vide a confusão política, urbanística e social que fermenta sob o Cristo Redentor— do futuro do país.

    O samba é outro, os novos blocos estão na rua. Quem sabe algo está nascendo aí, ou já nasceu. Para quem se dispuser a contar esta história, material é o que não faltará.

    michel laub

    Escreveu até julho de 2015

    É escritor e jornalista. Publicou seis romances, entre eles "Diário da queda" (2011) e "A maçã envenenada" (2013).

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