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    Michel Laub

    Artificialmente natural

    11/04/2014 03h02

    Numa cena conhecida de "Pulp Fiction", de Quentin Tarantino, e numa tradução palatável para quem foi à recente marcha pela família, há um personagem que diz a outro, anunciando a vingança depois de uma briga um tanto peculiar: "Serei medieval em seu traseiro".

    Tarantino é considerado um mestre dos diálogos. A fama é endossada por espectadores do mundo todo, eu inclusive. Sempre lembro desse exemplo quando criticam personagens de um filme brasileiro com o argumento de que "ninguém fala daquele jeito".

    Não que nossa produção audiovisual seja inocente. Sou de uma geração que acompanhou as ambições estéticas (chamemos assim) da Embrafilme e da pornochanchada. No segundo caso, as madrugadas do Canal Brasil comprovam: como levar a sério a dublagem daqueles capitalistas de charuto, de suas esposas interessadas no jardineiro e no limpador de piscina, tudo como possível metáfora moral do governo Geisel ou Figueiredo?

    Só que o cinema brasileiro mudou, e fico pensando se suas falas hoje são menos naturais que "serei medieval em seu traseiro". Se nossa menor familiaridade com os elementos da cena tarantinesca —a língua, em especial— não causa uma espécie de boa vontade ignorante, insuflada por anos de costume com os diálogos espertos de Hollywood.

    A diferença de recepção vale para outras cinematografias. As legendas de filmes asiáticos costumam trazer frases curtas e algo simplórias, que parecem tornar difícil a comunicação entre os personagens, e não sabemos se esta é uma característica cultural do país em questão ou erro/desleixo/impossibilidade de fazer melhor por parte do tradutor.

    Já em Pedro Almodóvar, às vezes, a dúvida é se o sinal duplo que algumas falas transmitem —entre a seriedade emocionada e o escracho— deve-se a um tom intencional, o kitsch que o cineasta gosta de cultivar, ou ao ouvido de quem associa a língua espanhola a esse registro/clichê.

    De qualquer modo, soar verossímil não é sinônimo de ser realista. Hollywood mesmo parece fazer uma imitação reverente da realidade, mas não faz: quem de nós desliga o telefone sem dar tchau, como é comum nos filmes americanos, depois de um diálogo em que são transmitidas informações técnicas nunca repetidas e conferidas, ou acredita que vilões fariam longos discursos antes de (não) matar o mocinho?

    O que a dramaturgia faz é propor um contrato, a "suspensão voluntária da descrença" (Coleridge), e no início de uma obra aceitamos ou não que o universo apresentado pelo artista pode ser daquela maneira. É um contrato que prevê autonomia, não submissão ao já sabido.

    Uma cena não poderia "acontecer assim"? Só até o dia em que, numa narrativa que a justifique, ela acontece.

    No caso dos diálogos, entra um fator pouco mencionado: o ouvido é menos objetivo do que parece, mesmo em nosso idioma. É comum estranharmos não apenas o vocabulário, mas a sintaxe —e, por consequência, a naturalidade— de quem supostamente usa os mesmos códigos que nós. Ouçam o Paulo Francis falando. Ouçam o Thunderbird. Ouçam o Sérgio Mallandro. Ouçam o Brizola.

    É difícil acreditar que a performance de tais figuras —não estou falando só de sotaque— saia espontaneamente. Como a arte, a vida não consegue ser 100% natural. O ser humano representa o tempo todo, para os outros e para si mesmo. Citamos frases alheias de forma literal ou irônica. Emulamos o modo de ser de personagens ficcionais.

    Isso porque não queremos soar típicos (uma forma menor de verossimilhança). Queremos soar interessantes. Quando o capitão Nascimento diz "o senhor é um fanfarrão", ecoando a solenidade falsa do jargão militar, e Zé Pequeno grita "porra!", ecoando o que Paulo César Pereio ecoou décadas atrás —foi a glória de um tempo, reconheço—, a pergunta não é se alguém do Bope ou da Cidade de Deus naquele ano, sob aquelas circunstâncias, usaria aqueles termos e aquele tom.

    Não temos como adivinhar isso mascando Trident em nossas poltronas de shopping.

    A pergunta é se o personagem é carismático o suficiente para tornar sem efeito os ruídos em sua voz. Quando o erro é bom, vira acerto. O resto, como qualquer macaco falante sabe, é apenas cópia.

    michel laub

    Escreveu até julho de 2015

    É escritor e jornalista. Publicou seis romances, entre eles "Diário da queda" (2011) e "A maçã envenenada" (2013).

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