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    Michel Laub

    Filmes que deveriam ser feitos

    23/05/2014 02h00

    — Western sobre pistoleiro aposentado e arrependido de todo o mal que causou, vivendo num rancho pobre e malcuidado no meio do nada. Um emissário misterioso aparece com a oferta para um último serviço. O pistoleiro recusa. O emissário fala em mais dinheiro. Nova negativa. Os restantes 146 minutos se passam no rancho mesmo: animais cansados, ferramentas velhas, reumatismo. A cara constante do protagonista é de dor.

    — Comédia romântica sobre sujeito travadão, funcionário de cartório e oprimido pelo chefe, que conhece moça linda, passional, imprevisível e com as contas todas atrasadas. Em vez de fazê-lo revelar seu verdadeiro eu em noites no salão de dança, todavia, ela consegue emprego num banco e descobre uma vocação. Os dois passam a acordar cedo. Almoçam e jantam em horários rígidos. Abrem uma poupança conjunta. Ouvem rádio AM.

    — Segundo a versão oficial, um policial honesto deu um tiro na própria cabeça. Nossa heroína brilhante e idealista é a detetive responsável pela investigação. Desde o início, ela tem o palpite de que há algo de errado, um crime que envolveria não apenas os colegas da vítima, mas o chefe da polícia, o promotor, o juiz, o dono do jornal da cidade, o fazendeiro, o prefeito e o padre hipócrita. A conspiração está a um passo de ser provada, mas eis que surge um fato novo: uma câmera registrou tudo, e foi suicídio mesmo.

    — Documentário sobre o hábito da leitura. Nenhuma frase do tipo "ler é um barato" ou "ler amplia o mundo". Entrevistados numa poltrona, de óculos e com a postura ruim. Adolescentes contam como "O Lobo da Estepe" tornou sua vida social mais difícil. Temas correlatos: depressão, alergia. Depoimentos de tuiteiros furiosos e professoras que moram com a mãe.

    — Adaptação de "Minima Moralia", de Adorno (comédia).

    — Adaptação de "Velhos Mestres", de Thomas Bernhard: aposentado vai todos os dias ao Kunsthistorisches Museum, em Viena, e passa horas em frente a um quadro de Tintoretto. Enquanto isso, pensa na Áustria. O longa-metragem (que deve ser assistido sem legendas, mesmo por quem não fala a língua) é uma tomada única, o aposentado de pé e de costas para a câmera fixa, enquanto ouvimos um off incessante de sua tosse e xingamentos contra tudo que é austríaco -a arte, o povo, o governo, a comida, a paisagem, o transporte, o comércio, os mictórios.

    — Aventura de férias em que ninguém viaja. Os personagens conversam sobre acidentes aéreos, malária e sujeira em hotéis e restaurantes. Há chuva e taxistas drogados e ladrões. Também uma subtrama sobre um voucher cancelado, com respectiva dificuldade de reembolso. "A melhor coisa da vida é dormir", diz uma senhora. Clímax: gente cortando a grama em janeiro, fazendo pequenos reparos na calha e na fiação.

    — Refilmagem de "O Voo", de Robert Zemeckis, em que deixam o piloto mentir e beber em paz.

    — Refilmagem de "Ela", de Spike Jonze, em que dão um monte de mato para todo mundo capinar.

    — Refilmagem engajada de "Bonitinha, mas Ordinária". Trecho da crítica no dia da estreia: "A cena do ferro-velho problematiza certos estereótipos. Consciente de sua condição oprimida, o bando contratado por Cadelão se recusa a ceder aos caprichos da personagem originalmente interpretada por Lucélia Santos —contribuindo, assim, para não naturalizá-los no imaginário de uma elite branca, patriarcal e irresponsável".

    — Ideia adaptada do diretor Bertrand Bonello: pornô em que o casal principal (ela, dona de casa entediada da Califórnia; ele, limpador de piscina) se apaixona e tem um filho. Trata-se de um estudo sobre o amor e suas consequências. A segunda metade da história se limita a mostrar os dois trocando fraldas, nada de beijos ou carícias, e o sono tranquilo do bebê depois de um bom banho morno.

    — Ideia antiga do escritor Alexandre Soares Silva: "Queria filmar 'Moby Dick' com um gordão no lugar da baleia. Ia ser o filme a sério, só que com um gordão nadando pelado todo contente (...). O roteiro ia ser exatamente o mesmo, só que na hora que Stubb dissesse, 'Você não pode escapar! Assopre e divida seu esguicho, ó baleia!', ia dar para ouvir o gordão dizendo baixinho, 'Ah, para com isso. Não estou tão gordo assim'".

    michel laub

    Escreveu até julho de 2015

    É escritor e jornalista. Publicou seis romances, entre eles "Diário da queda" (2011) e "A maçã envenenada" (2013).

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