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    Michel Laub

    Copa na TV aberta

    20/06/2014 02h00

    Cada um vive a aventura que pode. Como naquelas velhas reportagens do jornalismo literário, resolvi mergulhar numa experiência radical e emergir dela como um sobrevivente orgulhoso. Só que a tarefa não era ir para a guerra ou viver seis meses como mendigo, e sim passar os primeiros dias de Copa vendo TV aberta.

    O resultado não foi muito heroico. É verdade que enfrentei o Datena. Que Milton Neves alterna sua vocação para o Ministério Público com elogios a um supermercado. Que Renata Fan dá seus "recados" citando uma operadora de celular, e a música de uma querida ex-banda de protesto virou trilha de cerveja de milho.

    Mas já estou grandinho para me chocar com esse comércio contínuo de mercadorias e convicções. A reação é bem mais familiar: um reconhecimento tedioso das emoções editorializadas, do humor de amigão da firma.

    Muito se falou da imagem do Brasil passada aos estrangeiros durante a Copa. Para quem é daqui, o país desta semana sai da tela como vem saindo há anos. Matérias sobre nosso jeito hospitaleiro e folclórico. Considerações sobre uma terra de contrastes. Crônicas poéticas ao final dos jogos (uma das que vi falava da relação entre a chuva e a alma). Narrativas de superação dos guerreiros (a sobre Thiago Silva começa na infância pobre, passa por uma tuberculose e termina com o protagonista -música ao fundo- se tornando o "ca-pi-tão da se-le-ção brasileira").

    Registre-se que há exceções de boa reportagem, informação útil dada por bons comentaristas, dados de bastidor trazidos por ex-atletas articulados. O problema não está no varejo, e sim no atacado. Algo igualmente familiar: ninguém espera que Galvão Bueno deixe de torcer, que direitos de transmissão comprados por centenas de milhões não se transformem numa abordagem em geral oficialista -e, por isso, sem ousadia.

    A TV aberta é uma espécie de negativo das redes sociais. Em vez da falta de filtro, o filtro em excesso. Em vez da particularidade magnificada, a generalização sem diferenças. Se no Twitter o início da Copa foram protestos, greves e transtornos causados pela parceria Don Corleone-Didi Mocó que a organiza -o que é verdade-, em LCD o torneio vem sendo uma festa contínua cujo motor é a paixão de multidões -verdade também.

    Claro que há nuances aí. Há esforço das emissoras em sair da armadilha dos extremos. "O que a Globo não mostra" é o que a Globo mostra, sim, porém menos do que deveria -em momentos secundários da cobertura, em menções demasiadamente rápidas. O mantra dos locutores é algo como "todos têm direito de se manifestar, mas tudo tem hora". A oração adversativa é a senha para que a euforia continue, agora sem pudor.

    Por outro lado, e mesmo que a mistura entre jornalismo e entretenimento (ou departamento comercial) seja fato há muitas Copas, há uma novidade simbólica e incômoda em 2014. A mesma Globo que não faz merchandising explícito, ao menos na boca de seus locutores, desistiu de parecer neutra no principal produto de seu pacote. Quem opina sobre o campeonato da Fifa nos jogos do Brasil é Ronaldo Nazário, que presta serviços à Fifa.

    Na cerimônia de abertura, vestindo o terno azul que representa a imagem e os valores da casa, o fenômeno se disse feliz porque -tantas obras inacabadas e "adequações de orçamento" depois- as coisas estariam "prontas". É como se a caricatura sucumbisse a si mesma, o vilão de desenho animado dando munição aos mocinhos -este texto incluído- que usam o contraste para declamar o próprio espírito crítico.

    Comenta-se que o modelo de megaevento esportivo será repensado depois da experiência conturbada no Brasil. Na cobertura dos jogos isso já foi feito, de certo modo, mas apenas na TV a cabo. Ali temos Milton Leite, PVC, Juca Kfouri, Xico Sá e, principalmente, Eduardo Bueno explicando a nobreza do centromédio gremista de contenção.

    Com suas vantagens —tempo maior e variedade de programas e formatos— e contingências editoriais —o SporTV é da Globo, a ESPN é uma corporação internacional poderosa—, na média é uma abordagem menos paternalista e engessada, mais transparente e criativa.

    Para a grande audiência, ao contrário, resta a mesmice. É o legado de um modo de comunicar, e de enxergar o distinto público, que não acompanhou as mudanças no país e no mundo.

    michel laub

    Escreveu até julho de 2015

    É escritor e jornalista. Publicou seis romances, entre eles "Diário da queda" (2011) e "A maçã envenenada" (2013).

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