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    Michel Laub

    Legado e acaso

    04/07/2014 02h00

    Copas costumam marcar vitórias e derrotas na história ideológica do futebol. A subordinação do resultado à beleza morreu em 1982. A "Era Dunga", em sua versão purista e voluntariosa, virou pó em 1990 -e ressurgiu, um Lázaro com o sotaque tecnocrata do Parreira, quatro anos depois.

    Comparado às paixões então despertadas por esses debates, 2014 vem sendo ameno. O ótimo nível técnico e a alta carga dramática dos jogos corresponde a uma certa uniformidade física e tática, com discordâncias tímidas sobre o 4-2-3-1 ou o 4-3-3, a posse de bola ou a marcação recuada. A fala de atletas e treinadores, com sua retórica de superação emocional, bélica e publicitária, também varia pouco.

    O que a Copa atual botou em xeque são ideias extracampo. A mais óbvia é a da mistura entre esporte e política. Durante muito tempo, a crença comum era de que uma esfera necessariamente influenciava a outra. Os exemplos são clássicos: o Brasil Grande em 1970, a Argentina dos generais em 1978, o novo patriotismo alemão em 2006.

    Em 2014, vide o discurso dominante na imprensa e nas redes sociais, saudando a festa e ao mesmo tempo lembrando as trapalhadas rentáveis da organização, um consenso oposto ameaça se formar: o de que fruição e torcida em nada prejudicariam a vigilância crítica.

    A verdade está em algum ponto intermediário, como quase sempre. A experiência de quem gosta de futebol mostra, de fato, que ninguém mistura as coisas tão ingenuamente. Passei tempo demais da vida num estádio. Os clarões de euforia eventual nunca impediram a arquibancada de reclamar -do êxodo de jogadores, da bagunça dos nossos campeonatos, da burrice e esperteza dos dirigentes, de gastar a saúde numa obsessão ingrata e sem sentido.

    Ao menos neste ponto, o torcedor médio está longe de ser idiota. E com a Copa não seria diverso. Mas é igualmente ingênuo ignorar o caráter simbólico, portanto político, já que política tem sido mais espetáculo que substância, mais versão do que fato, do sucesso ou do fracasso do torneio.

    Objetivamente, sigo achando indefensável um projeto que não consegue concluir obras (várias delas com benefícios discutíveis) em sete anos, ou o financiamento a juros subsidiados de estádios de luxo num país em que —simbologia, de novo —faltam leitos de hospital.

    Só que o "legado" disso tudo nunca foi apenas material. Este é um conceito que surgiu no debate público depois da opção por receber um megaevento cujo modelo tem histórico de controvérsias sociais, ambientais, administrativas e éticas.

    A principal aposta era na imagem que o país passaria, o "soft power" que tentaríamos acumular no imaginário do mundo. Se isso não é política, muito além da mesquinharia eleitoreira, difícil dizer o que é.

    O futuro não discutirá o custo/benefício da festa. Como não se discute mais o custo/benefício da construção de Brasília, do Proer ou do Aerolula. Ficarão apenas as sínteses narrativas: primeiro, ameaças de greve, filas, PM baixando o cacete em manifestantes, imprensa deplorando nossa incapacidade de planejamento; depois, estádios lotados, estrangeiros sorrindo nos bares, aeroportos que funcionam, imprensa destacando a "mudança de humor" no país.

    Até que ponto o que acontece em campo também tem influência aí? No momento (escrevo na quarta), é baixo o índice dos que apostam num saldo negativo para o torneio. Mas as primeiras "mudanças de humor" seguiram os primeiros grandes jogos que tivemos. E estes, como os resultados de 1982, 1990 e 1994 —confiram os compactos no YouTube—, devem muito ao acaso. O que aconteceria se Júlio César não pegasse os pênaltis, e estas duas semanas finais fossem uma eternidade anticlimática? Eu também ia dizer algo sobre Brasil X Colômbia —uma semana a menos nesta contagem—, mas deixa assim.

    Se há algo que o último ano ensinou, é ter um pé atrás com previsões. Um dia antes do início dos protestos de 2013, a ideia corrente era a de um país com pleno emprego e ascensão econômica massiva de classes desfavorecidas. Um dia antes da cerimônia de abertura no Itaquerão, o tamanho do engano sobre o ânimo geral (eu incluído aí) foi semelhante.

    Entre o ufanismo e o derrotismo, versões da mesma torcida para que o mundo se encaixe em visões pré-formatadas, a história —como um jogo de futebol— é sempre mais complexa. A ideologia deveria vir depois dos fatos, não o contrário.

    michel laub

    Escreveu até julho de 2015

    É escritor e jornalista. Publicou seis romances, entre eles "Diário da queda" (2011) e "A maçã envenenada" (2013).

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