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    Michel Laub

    Bem-vindos à fogueira

    12/09/2014 02h00

    Há vários roteiros previsíveis no atual debate público. Um deles ocorre quando alguém faz algo que parece monstruoso. Passos seguintes: 1) crucificação; 2) psicólogos teorizam; 3) alguém lembra que estamos num Estado de Direito e não se deve condenar sem provas; 4) na hipótese de se revelar que a história não era bem assim, lamenta-se a cultura de linchamento em que vivemos.

    Por ora, me contento com o papel algo bacharelesco do item 3. É o que resta diante de "Bem-Vindo a Nova York", filme de Abel Ferrara sobre o caso Dominique Strauss-Kahn, em cartaz desde a semana passada. Para quem não acompanhou, trata-se do francês que presidia o FMI em 2011, quando foi preso por supostamente abusar de uma camareira num hotel de Manhattan.

    Com uma interpretação vigorosa de Gérard Depardieu, a trama não sai muito da proposta inicial: um protagonista alheio aos sentimentos das prostitutas, secretárias e jornalistas que assedia, usando dinheiro e status para satisfazer uma libido predatória, cumpre o papel de reiterar o que nos foi informado de antemão. Não se toca em outros aspectos de sua personalidade. O episódio do hotel é mostrado em detalhes.

    Nos anos 60/70, a crítica de cinema gostava de usar um termo hoje gasto para se referir a esse tipo de abordagem. "Fascismo" definia de filmes que não rezavam pela ortodoxia ideológica de então (e esta incluía até o maoismo de Jean-Luc Godard) ao uso de cenas que mobilizavam emoções primárias do espectador (como a da vingança) sem dar nada em troca.

    "Bem-Vindo a Nova York" não se enquadra no primeiro modelo, digamos. Strauss-Kahn é homem, branco e chefiava uma instituição vista como responsável por boa parte da pobreza e desigualdade mundiais. Poucos alvos são mais adequados aos ataques da ortodoxia de 2014. E Depardieu, que preferiu a Rússia de Putin aos impostos na França governada por um social-democrata, é uma escolha de elenco entre a ironia e o reforço desse espírito.

    Quanto à mobilização de emoções primárias, bem, as imagens falam por si. Ferrara mistura nossa condenação moral a Strauss-Kahn ao que imagina, e isto dá uma pista de seus conceitos e preconceitos, repulsa à condição física de Depardieu —que é exibido pelado, do alto de seus 65 anos e quem sabe o dobro em quilos, e tem tiques (os modos à mesa, o ronco que faz ao respirar) que lembram os de um porco.

    Uma característica do fascismo estético é a visão totalizante da realidade, mesmo a fatia dela selecionada num longa-metragem. Pode-se argumentar que não há como tratar do tema Strauss-Kahn sem esbarrar na sordidez. Será? Várias das provas colhidas no inquérito acabaram desacreditadas. O réu foi solto da prisão domiciliar ainda em 2011. Ele talvez pratique e represente a misoginia mais abjeta, mas era mesmo culpado daquele crime específico? Para não perder o foco: é isto o que está em questão no filme.

    Quanto mais velho fico, mais me apego a perguntas que uma criança faria em determinadas situações. São as mais confiáveis, porque a inocência contrasta e expõe a mentira conceitual ou comercial. Ao saber que "Bem-Vindo" era o novo projeto de Ferrara, cineasta cujo grande talento acompanha o gosto pela controvérsia, a dúvida imediata foi: ele tem algo novo a dizer a respeito ou é só publicidade em cima de um escândalo?

    Infelizmente, a resposta é a que tem sido comum por aí. Indignação a favor da manada, mesmo vinda de um artista "incorreto", é só uma forma de reiterar o bom conceito que temos de nós mesmos. Há um prazer generalizado em ver a realidade afirmar aquilo em que acreditamos. Pobre do indivíduo que, em virtude de um processo judicial, declaração infeliz, temperamento ou mesmo condição inata (que é confundida com estruturas históricas de poder), torna-se um obstáculo no caminho.

    Como exceção à regra geral da cultura, para ficarmos com outra citação de Godard, a arte deveria ir contra isso: ver ambiguidade e tumulto no que parece simples e resolvido. Se não for possível —e não seria se Ferrara soubesse, de fato, o que aconteceu naquele hotel—, deixem as certezas narrativas a cargo da imprensa e das redes sociais.

    Ao contrário de um filme, as duas ao menos podem mudar de ideia. Nem que seja para depois condenar com fúria, fazendo o citado item 4 retornar à casa do item 1, nossas fogueiras inquisitoriais de todo dia.

    michel laub

    Escreveu até julho de 2015

    É escritor e jornalista. Publicou seis romances, entre eles "Diário da queda" (2011) e "A maçã envenenada" (2013).

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