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    Michel Laub

    Novo vocabulário político

    10/10/2014 02h00

    A linguagem do poder democrático pode ser chata: porcentagens, orações adversativas sem glória. Um governo só consegue ser funcional com alguma reverência aos fatos. Talvez desse para contar a história brasileira dos últimos vinte anos pelo modo como nossos principais partidos sublinharam ou negaram —sem sucesso— tal monotonia.

    Em tese, a social democracia petista é a primazia da política sobre a ação econômica. O social liberalismo do PSDB seria o contrário. No primeiro caso, o discurso foi temperado com algum getulismo e retórica grandiloquente setentista; no segundo, com toques de República Velha e jargão tecnocrata noventista.

    Apesar das diferenças de sotaque, visão de Estado e visão da sociedade, ambos são partidos reformistas do fim do século 20. Seus governos têm em comum, ao menos, a ênfase na prosperidade como motor de justiça social. O que volta e meia leva a uma abordagem quantitativa: cidadania é igual a renda, educação é igual a número de alunos na escola ou na faculdade.

    Tanto sob FHC quanto sob Lula/Dilma, esse consenso pragmático e laico fez o imaginário do país cair nos braços da economia e da administração, com uma ajuda amiga da publicidade e da crônica policial.

    O fenômeno Marina Silva mudou o panorama, e o que se anunciava timidamente nos debates sobre aborto da eleição de 2010 parecia ter vindo para ficar. A exemplo do que ocorre (às vezes) nos Estados Unidos, nosso futuro eleitoral abandonaria as divergências sobre inclusão e superávit primário para se concentrar nos chamados "valores".

    A derrota da candidata do PSB não tira dela uma característica: a de representar, por história pessoal ou ideologia, ao menos duas das três principais forças a combater o caráter amoral —não imoral— da prosperidade. A primeira é a pregação evangélica, que ataca não a bênção capitalista de comprar uma geladeira em 18 prestações, mas sim a tolerância de hábitos e opiniões que costuma pautar o sistema.

    O vocabulário surgido dessa fonte ainda é tosco, vide a excreção argumentativa dos Levy Fidelix da vida em nome da autoridade tradicional —"eu como avô"—, mas é provável que os sonháticos do dízimo encontrem uma gramática eficiente, menos violenta, que vocalize sua utopia regressiva: a busca por valores familiares e sociais hipoteticamente perdidos no relativismo contemporâneo.

    Num flanco que parece oposto, mas não é tanto, Marina também reunia algo de nostálgico no ataque aos efeitos do consumo/produção. Carros dão empregos tanto quanto entopem e poluem as cidades. O agronegócio garante comida e traz divisas tanto quanto gera desmatamento e conflitos com índios e sem-terra. Nas suas versões viáveis ou delirantes, o ambientalismo está longe de ser apenas uma corrente econômica.

    Há em seu léxico, de expressões como "energia limpa" e "consumo responsável", apelo a um universo moral. Também é um passadismo: o horizonte é um estilo de vida cuja inteligência se traduz na velha e boa simplicidade. Uma harmonia com a natureza que pode ser a salvação de nossa triste espécie —até acredito que seja—, mas só existiu (se existiu) na era pré-industrial.

    Quanto à terceira força anticonsenso, trata-se de uma massa difusa reunindo dissidentes partidários, idealistas bem intencionados, anarquistas, foucaultianos & deleuzianos, hippies, socialistas primitivos, neofascistas. O que todos têm em comum é um valor majoritariamente político: a desconfiança ou rejeição à democracia como experimentada hoje.

    Se a língua franca do "possível" passa pelas barganhas do sistema representativo, os protestos de 2013 revelaram o anseio por outro tipo de cidadania –fundada na participação direta e permanente, nas ruas ou na internet, apostando que a ausência de filtros de autoridade está a salvo dos pequenos grupos de interesse e maiorias totalitárias.

    Assim como ocorre com as ideias marinistas, não acredito que as urnas tenham enterrado essa outra utopia, cujo potencial de sedução não depende do poder. Pelo contrário, termos como "novas narrativas" e "reinvenção das instituições" sempre soarão melhor na pureza redentora da teoria.

    Por contraste, e não importa se (ainda) restrito ao mundo encantado das redes sociais, este é o idioma que denunciará para as camadas jovens e ilustradas a mesmice das falas da presidente Dilma ou do presidente Aécio.

    michel laub

    Escreveu até julho de 2015

    É escritor e jornalista. Publicou seis romances, entre eles "Diário da queda" (2011) e "A maçã envenenada" (2013).

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