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    Michel Laub

    Memória não afetiva

    07/11/2014 02h00

    Li em "A Biblioteca à Noite", de Alberto Manguel, que pensadores medievais consideravam a ideia de um presente eterno semelhante à ideia de inferno. Ponha seu nome no Google, recolha o lixo químico de algumas coisas que andaram dizendo sobre você, e o fenômeno fica evidente.

    Muito já se especulou sobre como a overdose de dados na internet mudará o atual conceito de inteligência. Me interessa um outro efeito disso: se pensar é saber esquecer, como mostrou um personagem de Borges, sujeito sobre quem caiu a maldição de lembrar tudo o que fez, disse e sentiu, sem conseguir dar hierarquia e sentido a nada, gostar esteticamente de algo também demanda um descarte contínuo de informações.

    Ou a manutenção de certas memórias num lugar seguro. Livros costumam mudar (para melhor ou pior) longe de nós. Não tenho como manter a impressão original sobre "Os Meninos da Rua Paulo", lido aos 13 anos, ou "Os Dragões Não Conhecem o Paraíso", lido aos 20, porque não sei mais –ninguém sabe– pensar e sentir dentro dos limites de épocas passadas.

    O máximo que posso dizer é que ambos continuam bons em 1986 e 1993. Assim como a novela "Vale Tudo" segue perfeita em 1988, e "Warriors - Os Selvagens da Noite" é um dos filmes de gangue mais impactantes feitos para a plateia que estreou seu videocassete de classe média aos 14 anos.

    Sujeitar o tempo à nossa subjetividade afetiva tem suas vantagens. A lembrança de uma experiência cultural antiga traz a precariedade impressionista de então, os significados ainda não definidos pelo repertório que se adquiriu mais tarde. Para mim, o terror de "Warriors" nada tem a ver com a radiografia que o filme, de 1979, fez da degradação urbana de Nova York –uma abordagem elevada, de sotaque sociológico e político, que poderia aproximá-lo de clássicos como "Taxi Driver" (1976).

    Como assisti ao VHS bem depois (em 1987) e num país distante (Porto Alegre), quando começava a andar sozinho à noite e me empanturrava de histórias sobre delinquência juvenil contadas por amigos tão medrosos quanto eu, o que ficou foi um registro bem mais direto e pessoal. Não rever o filme é preservar algo único na minha relação com ele, o eco de uma sensibilidade intocada pelo que me tornei em 2014.

    Desde o surgimento da internet, essa escolha se tornou menos frequente. O acesso imediato e irrestrito ao acervo universal do passado é um ganho óbvio do nosso tempo, e reavaliações estéticas continuam sendo um exercício necessário e divertido, mas algumas coisas se perdem no caminho. Vejam o caso da música. Toda vez que alguém nas redes sociais descobre um artista semiobscuro que conhecemos, surge a tentação quase incontornável de dar alguns cliques e conferir o que sobrou de seu legado.

    Aconteceu comigo umas semanas atrás, e me vi diante do cânone de certo rock secundário (ou terciário) dos anos 80 —The Church, Psychedelic Furs, Lloyd Cole and the Commotions, o INXS da primeira fase. A tristeza opressiva de algumas dessas canções, que um dia disseram tanto da minha sensibilidade e temperamento, até do meu futuro (numa profecia que se autocumpriu), desaparece em letras e arranjos que não tenho como não achar derivados ou pretensiosos.

    O mesmo acontece com shows que vi na adolescência, milagres de performance e energia sob uma perspectiva ingenuamente comovida, mas que hoje definham na imagem tosca e no som achatado do YouTube.

    A cada "play" que damos nesta maçaroca, tão estranha a nós por questões técnicas, temporais ou emocionais, morre um pouco da nossa biografia: passo a ser apenas um adulto cultivado, orgulhoso da capacidade de ser irônico comigo mesmo, dissecando uma espontaneidade que não pode mais se defender.

    O mundo surgido daí, fundado apenas nas chancelas culturais do presente, com seu julgamento objetivo e implacável, é mais previsível. E menos generoso: exclui-se a indulgência, esta forma torta de carinho, baseada no esquecimento dos nossos critérios e da nossa vergonha, com obras que nos foram tão importantes –ou seja, com aquilo que éramos.

    Se a nostalgia não nos permite olhar para a frente, aqui é o caso de reaprender a olhar para trás.

    michel laub

    Escreveu até julho de 2015

    É escritor e jornalista. Publicou seis romances, entre eles "Diário da queda" (2011) e "A maçã envenenada" (2013).

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