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    Michel Laub

    Água, luz e colapso

    DE SÃO PAULO

    13/02/2015 02h00

    Cada geração tem seu conceito de esperança. Começar a virar adulto no Brasil dos anos 1980, por exemplo: depois de Diretas Já e seleção do Telê, Aids e Plano Cruzado, com Collor e o Paulo Ricardo de ombreiras fazendo previsões sobre a virada do século, aprendemos que o alimento do otimismo é a desinformação.

    A referência de época não é por acaso. Foi naqueles dez anos que o grande medo nuclear, onipresente do pós-guerra até a queda do Muro, começou a ser substituído pelas duas narrativas que hoje dominam o catastrofismo ocidental. A primeira é a do terror islâmico, instrumento de uma utopia de conversão do "mundo infiel" que ganha força com a Revolução iraniana de 1979.

    A segunda é a do suicídio ecológico, que nasce nas décadas de 1960 e 1970 e vira "mainstream" oitentista com as pautas do buraco do Ozônio e do desmatamento. O fim do mundo sempre esteve entre nós. A questão é se, como nas seitas de tipos como David Koresh, cujos integrantes morreram em 1993, chegou a hora de suas profecias provarem que estavam certas.

    Em "Colapso", livro que gerou controvérsia ao ser lançado em 2005, Jared Diamond estuda a ruína ou desaparecimento de diversas sociedades, da Ilha de Páscoa antes da chegada dos europeus à Ruanda de 1994, e tenta tirar daí lições para impasses atuais. Se não quisermos ser tão extremos numa sexta-feira de carnaval, dá para substituir o conceito de apocalipse por aquele que o autor define como "futuro com um padrão de vida consideravelmente inferior, riscos maiores e crônicos, declínio daqueles que consideramos nossos valores fundamentais".

    Parece um cenário familiar? Claro que uma São Paulo com falta de água ou o Brasil com falta de luz, tudo num ano de recessão e bordel político, não são um país africano faminto e superpopuloso à beira de um genocídio étnico estimulado por desmandos coloniais. Mas também não são a Califórnia ou Nova York, lugares com mais recursos e estrutura para enfrentar secas.

    Na projeção de tempos difíceis, independentemente das chuvas de fevereiro, os limites ainda são obscuros. Então não custa ser prudente. Um David Koresh brasileiro de 2015 poderia lembrar as condições que, no todo ou em parte, com graus variados de influência, sem falar nas dificuldades do método comparativo nesse contexto, "Colapso" identifica nos casos em que a piora vira juízo final.

    Duas delas não se aplicam ao nosso drama local: vizinhança hostil e alterações significativas das relações com parceiros comerciais. E duas se aplicam: mudança climática e dano ambiental. A quinta condição, que Diamond vê em 100% dos exemplos que analisou, é a que mais nos define no momento: respostas erradas do poder e da sociedade à crise.

    Vale para Dilma, que trocou planejamento por declarações sobre a energia "mais do que suficiente" no longo prazo. Vale para Alckmin, com suas negativas eleitoreiras sobre um problema anunciado há anos. E vale para nós, que por omissão ou voto endossamos a mediocridade de ambos e de tantos outros, no executivo e no legislativo, a mesma que põe nulidades políticas, administrativas e/ou éticas para cuidar do petróleo, das florestas e rios, da educação, da segurança, do transporte público.

    Se cabe fazer algo a esta altura, é nos atermos aos valores citados por Diamond. Essa foi uma das polêmicas do livro: a tese de que o declínio envolve algum grau de escolha, e mais ainda hoje, quando existe informação e tecnologia para prever e desarmar tragédias do gênero. Em nossa interdependência social e ambiental, usar recursos com sabedoria, combater a desigualdade e tolerar a diversidade são essenciais para não cair na barbárie. É sempre uma tentação em épocas de escassez: pode terminar em violência generalizada, pode começar com a delação de um vizinho que toma banhos longos.

    Quem cresceu nos anos 1980 aprendeu que o otimismo é ingênuo na teoria, mas também é um ramo das ações práticas. Ou seja, dá para seguir fazendo o melhor possível no trabalho e na vida pessoal. Por isso o mundo é tão bom a par de guerras, fome, peste e ombreiras.

    O que não dá é para aliviar quem nos botou na situação atual. Não votar nessas pessoas e partidos, rir dos seus propagandistas, não deixar que a história esqueça o que eles ajudaram a fazer com nosso futuro imediato: eis uma forma de começar a sair do atoleiro.

    michel laub

    Escreveu até julho de 2015

    É escritor e jornalista. Publicou seis romances, entre eles "Diário da queda" (2011) e "A maçã envenenada" (2013).

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