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    Michel Laub

    Nick Cave comendo pizza

    27/02/2015 02h00

    Duas cenas talvez explicassem "Nick Cave "" 20.000 Dias na Terra", de Iain Forsyth e Jane Pollard, caso o protagonista deste documentário/ficção fosse um artista previsível.

    A primeira é uma performance de "Jubilee Street", faixa do disco "Push the Sky Away" (2013), que fala de temas da predileção do cantor e compositor australiano: paixão e desespero num cenário gótico de pequenas cidades tementes a um deus furioso, onde um solitário é assombrado por lembranças enquanto arrasta uma "catástrofe de dez toneladas numa corrente de 30 quilos".

    A segunda traz Nick Cave comendo pizza e rindo enquanto vê um filme com os filhos.

    O contraste entre a exuberância sobre o palco e a banalidade da vida doméstica é comum por aí. Mas não é algo que a narrativa contemporânea sobre artistas goste de comentar. Esperamos deles tormento, caráter inconstante e duvidoso, uma sopa de clichês românticos cozida até reforçar a certeza de que a genialidade é um prolongamento da loucura.

    Apenas como exemplo da hora, basta ver como outros filmes em cartaz tratam do tema: na egocêntrica ficção "Birdman", o talento de um ator prestes a estrear na Broadway só é provado num ato visceral de mistura entre vida e arte. Já no bom documentário "Cássia Eller", os reconhecidos atributos musicais da personagem são amplificados por sua biografia trágica.

    "20.000 Dias na Terra" teria tudo para embarcar num modelo assim. No passado de Cave há vícios e transgressões tão ao gosto do período pós-punk que o viu iniciar sua carreira múltipla e inclassificável.

    O romantismo da vida particular seria o espelho natural para um diálogo com o próprio trabalho: tanta intensidade angustiada –que tenta purgar pecados de sotaque bíblico numa era pop e mundana– é o subtexto de obras-primas como os discos "The Boatman's Call" (1997) e "No More Shall We Part" (2001).

    Mas Forsyth e Pollard preferem outro caminho. Supostas 24 horas na vida do cantor trazem um mosaico de conversas e registros que só fragmentariamente se completam, sem nenhuma das omissões ou ênfases que permitem contar em linha reta uma trajetória.

    No filme há ensaios de solenidade pretensiosa, em cenas como a de um simulacro de divã psicanalítico onde são ditas platitudes do tipo "a memória é tudo o que somos". E há as frases de efeito de praxe, como a que vê na composição musical um choque entre elementos diversos entre si, tais quais "uma criança, um palhaço e um psicopata mongol".

    O tom acaba sempre voltando, no entanto, para uma sinceridade plácida e nada heroica. Para quem parece rezar pela cartilha dos excessos, é quase subversivo Cave declarar que gostaria de ter "editado melhor" canções que hoje soam "longas demais". Ou que sua postura pública atende a uma demanda por ídolos pop com traços demiúrgicos. Ou que os fatos do dia a dia são canibalizados para criar o "monstro" de sua obra.

    Tudo o que vemos, nesse sentido, tem algo de encenado por alguém que é e não é um sujeito comum. A performance de "Jubilee Street" é editada na duração, no volume dos instrumentos e do coro, nas palmas, nas imagens de shows do passado intercaladas com as atuais. A cena da pizza tem o humor negro típico de Cave, o que quase passa batido numa aparência de realismo: o filme (que não vemos) é "Scarface", clássico sobre cocaína e assassinato.

    Não sei se saí do cinema sabendo mais sobre o objeto na tela do que antes. Mas dá para dizer que passei a gostar ainda mais dele: o apuro visual e rítmico de Forsyth e Pollard não está ali para nos revelar verdades sobre um indivíduo, e sim para reproduzir um universo cuja autenticidade é estética e basta em si.

    A essência do fenômeno Nick Cave está nos céus azuis ou tempestuosos de Brighton (Inglaterra), nos cabelos negros das musas, no tique taque de relógios antigos, nas cartas de amor sangrentas, na relação carinhosa com parceiros de banda como Warren Ellis, no modo sussurrado, gemido, choramingado, cantado e gritado como esses elementos se traduzem em música.

    O resto –como e por que o sublime encarna no monstro– é um mistério cuja beleza seria mesquinho tentar decifrar.

    michel laub

    Escreveu até julho de 2015

    É escritor e jornalista. Publicou seis romances, entre eles "Diário da queda" (2011) e "A maçã envenenada" (2013).

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