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    Michel Laub

    Olho por Dente

    08/05/2015 02h40

    Diferentemente da imagem que tem hoje, a Lei de Talião foi um avanço no direito penal. Ao menos no da Babilônia do século 18 a.C.: antes do "olho por olho, dente por dente", as punições tinham pouco a ver com a gravidade aos crimes. Se alguém roubasse um boi do vizinho, poderia ter a casa incendiada com o rebanho e a família dentro.

    Dado o tipo de justiça que anda sendo praticada na internet, uma versão 2015 do Talião não seria má ideia. Se há algo em falta nas redes sociais, é proporcionalidade. Nos dois sentidos do termo: para alguns notórios políticos e formadores de opinião, nada do que for dito constrangerá uma trajetória de venalidade orgulhosa.

    Já para quem tem alguma vergonha na cara, mas erra como qualquer humano, as penas podem ganhar dimensões de Velho Testamento. É sobre esses indivíduos até então anônimos, ou no máximo conhecidos em nichos, que escreve o jornalista britânico Jon Ronson em seu novo livro.

    "So You've Been Publicly Shamed" ("então você foi humilhado publicamente", Riverhead Books, 304 págs.) não nega os benefícios do aumento dos canais de expressão trazido pela revolução digital. O mundo é melhor hoje do que 20 anos atrás, quando cidadãos comuns tinham pouca voz para denunciar abusos de grandes corporações ou equívocos da imprensa tradicional.

    Mas o foco do livro não é a crítica ativista, sempre necessária, nem os erros que motivam a indignação coletiva, alguns merecedores de castigo severo, e sim o modo como esse instrumento saudável da democracia vira outra coisa.

    Assim, uma foto desrespeitosa em frente a um memorial de veteranos de guerra (caso de Lindsey Stone), ou uma piada sexista dita em privado durante um congresso de informática (caso de "Hank", nome fictício), são suficientes para instalar o Apocalipse. De perda de emprego a campanhas de incitação à violência e ameaças de morte, com crises de depressão e tentativas de suicídio incluídas no pacote, o fogo extingue o presente e o futuro dos denunciados –e, eventualmente, dos denunciantes.

    Com o estilo leve de obras anteriores, às vezes um tom acima na excentricidade "gonzo" que tenta fisgar a atenção do leitor, Ronson faz bom jornalismo ao investigar o que poderia haver de novo nessa atualização de antigos esportes coletivos, como as chibatadas públicas em adúlteras ou o vexame de pecadores políticos em regimes totalitários.

    A tecnologia tem um papel decisivo aí, claro: na rapidez com que um veredito se espalha nas redes, na recompensa imediata em popularidade para os inquisidores.

    Também na duração do sofrimento das vítimas. Por causa dos algoritmos que comandam os sites de busca, nos quais a frequência de uma citação a faz pular para o alto da página de resultados, a tendência é que o horror se eternize. Em qualquer entrevista de emprego ou flerte das próximas décadas, figuras como Justine Sacco –autora de uma tirada infeliz (ou mal interpretada) sobre Aids– rezarão para que seu nome não seja digitado no Google.

    Ao contrário do que pregavam estudiosos do comportamento coletivo, do racista Gustave Le Bon (1841-1931) ao controverso Philip Zimbardo, linchamentos não se baseiam na contaminação pela loucura da manada ou no instinto destrutivo que nossa espécie manifesta quando tem chance. Como toda forma de moralismo, os tribunais da internet partem de um pressuposto mais nobre: todos ali acham que estão apenas fazendo o bem.

    Os depoimentos colhidos por Ronson são claros nesse sentido. Os envolvidos sempre apelam a um senso heroico de dever. O linchado não representa uma individualidade no lugar da qual poderíamos nos botar, sujeitos que estamos a descuidos ou inexatidão na expressão escrita ou oral, e sim o sintoma de ideologias ou injustiças históricas que devem ser combatidas sem trégua.

    No limite, nem há a sensação de responsabilidade depois que o êxtase acusatório tem início, porque o ato instantâneo e solitário de compartilhar um post é um grão de areia na marcha das grandes reparações cidadãs.

    Ao final, as vítimas não são apenas os linchados. O próprio debate público se apequena. O medo ou a preguiça de ser o próximo alvo afasta a especulação livre –e às vezes irônica e amoral– sem a qual um argumento complexo não consegue ser construído. O risco é acabarem todos cegos, banguelas e satisfeitos com essa banalidade só aparentemente inofensiva.

    michel laub

    Escreveu até julho de 2015

    É escritor e jornalista. Publicou seis romances, entre eles "Diário da queda" (2011) e "A maçã envenenada" (2013).

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