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    Michel Laub

    Um clássico das coisas

    22/05/2015 02h00

    Num "Roda VIVA" recente, Amyr Klink parecia tão entusiasmado ao falar sobre viagens quanto ao falar sobre design. Faz sentido. A aventura de enfrentar tempestades em alto mar ou conversar com os pinguins na Antártica começa na escolha dos materiais do barco, no projeto que determinará uma jornada estilo Arca de Noé ou Titanic.

    É mais comum achar que vivemos cercados de ideias erradas do que de objetos errados. E talvez a verdade seja o oposto, ao menos do ponto de vista mesquinho do dia a dia. Dá para evitar discutir a reforma fiscal no buffet por quilo, mas não nos livramos de sentar em cadeiras desconfortáveis, de lidar com embalagens que exigem um plano de engenharia para serem abertas.

    Um dos exemplos usados por Amyr Klink dá a dimensão social e econômica dessa pouca inteligência: por que as torneiras são reguladas com as mãos, as mesmas que usamos para nos ensaboar enquanto a água corre, e não com os pés, que poderiam administrar melhor o uso de um recurso tão escasso?

    O design lida com perguntas do gênero, e muitas não têm respostas satisfatórias: dos carros tipo 4x4, cuja força e tamanho são inúteis ou contraproducentes em cidades entupidas de trânsito, aos celulares que foram do gigantesco ao minúsculo, e de novo ao gigantesco, prejudicando a portabilidade –seu atributo mais precioso– em nome de ganhos relativos na visualização da tela e no uso do teclado.

    A questão não é apenas de evolução tecnológica, como era quando o homem construiu as primeiras ferramentas para caçar e se defender. Nem se deve apenas a uma sociedade consumista, na qual há criação constante de necessidades e obsolescência programada dos produtos.

    O já consolidado "revival" do disco de vinil, sobre o qual andaram escrevendo Marcelo Coelho na Folha e Lorenzo Mammi na "Piauí", é ilustrativo. Um produto com origem no petróleo, que usa quilos de equipamento para uma pequena agulha dar conta de seu frágil trabalho, não poderia simbolizar em 2015 uma demanda por sabedoria (menos desperdício ecológico, mais potencial de armazenamento de conteúdo) nem a ganância de uma indústria (que estava falida quando a demanda renasceu).

    Desde o surgimento do MP3, o vinil deixou de ter o que Amyr Klink chamaria de beleza simples. Sua apreciação e uso são mais trabalhosos que os da alternativa digital, mais caros, exigem mais espaço e se concretizam de forma quase ritualística, obedecendo a uma escolha cronológica e limitada de faixas que é do artista e não –como é praxe na cultura da internet– do público ou de um botão de "shuffle".

    Óbvio que há algum modismo no fenômeno, o status de autenticidade conferido a quem coleciona um item cuja aura passa longe do esnobismo dos vinhos ou do nerdismo à antiga dos selos. Mas, por razões que também dizem respeito ao design, pouca gente duvida que o disco é um clássico do mundo das coisas.

    Em seu ensaio, Lorenzo Mammi mostra como houve uma integração entre objeto e o universo que ele captura e reproduz, o da música no século 20. Essa história, que passa pela ascensão do rádio, pelo formato da canção popular, pelo visual das capas e pela narrativa dos encartes, começa a dar àquelas linhas negras e paralelas girando monotonamente sobre um prato o carisma de hoje.

    Fechando o círculo, a presença de tantos álbuns na biografia emocional de muitas gerações vivas –que relataram essa experiência às mais novas– firma de vez a ideia que está na base do "revival": a de que o som saído de uma vitrola é melhor que o de um arquivo de alta qualidade.

    Não é o caso de discutir a afirmação em termos técnicos. Seria mais exato ressaltar a especificidade desse som, com sua textura crocante de timbres, acordes e ruídos devida a características inimitáveis da relação entre agulha e sulcos.

    É um detalhe físico que dialoga, aí sim, com uma evocação de verdade, permanência e sabor. As metáforas daí surgidas são infinitas. Tom Waits igualou os estalos de velhas gravações a "bacon pulando numa frigideira". Marcelo Coelho vê no disco a "poesia irônica e sombria" dos guarda-chuvas e dos óculos escuros. Lorenzo Mammi o descreve como "mundo para o qual concorriam diferentes linguagens, um sistema de códigos, um modelo de vida."

    Frases que, unindo razão, estética e experiência sensorial, justificam o amor por um objeto que nunca esteve e nunca estará errado.

    michel laub

    Escreveu até julho de 2015

    É escritor e jornalista. Publicou seis romances, entre eles "Diário da queda" (2011) e "A maçã envenenada" (2013).

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