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    Michel Laub

    Os fins do arco-íris

    03/07/2015 02h00

    No debate sobre discriminação, pregar a tolerância é o melhor caminho? Numa de suas provocações costumeiras, e citando o exemplo insuspeito de Martin Luther King, o filósofo esloveno Slavoj Zizek acredita que não. Segundo ele, a meta deveriam ser leis que concretamente protejam e emancipem grupos vitimados por religião, etnia, gênero e comportamento.

    O problema seria mais de topo, digamos, do que de base. É um raciocínio atraente para a militância, pois dá a ela ferramentas e horizontes objetivos, em vez de limitar sua ação a apelos genéricos e cheios de coraçõezinhos na terra dos afetos de pelúcia.

    Só que as coisas são mais complexas. Levado ao limite, e boas intenções à parte, o argumento ganha o sotaque autoritário que impõe condutas imunes a um dos preceitos da sociedade livre: o de que a lei surge do consenso (ou de um nível possível de consenso), e não o contrário (regras impostas de cima para baixo).

    Melhor pensar que a democracia, sistema de maiorias feito também para proteger minorias, será mais saudável se cultivarmos valores –como a aceitação das diferenças– que tirem a noção de direito individual do campo formal/teórico. A história é triste e repetitiva ao mostrar que leis são inúteis quando não há prática social a sustentá-las.

    Topo e base são partes do mesmo processo, como provam os bem-vindos avanços na legislação/jurisprudência sobre a união entre gays no Ocidente. Semana passada, o Supremo americano deu um passo importante na área.

    Não há dúvida de que houve por lá um intenso e bem costurado lobby jurídico e político. Um trabalho de profissionais, feito de paciência e estratégia, que lida com questões técnicas distantes das oscilações e simplificações da plateia leiga. Mas que só se legitima no mundo real porque batalhas simbólicas de opinião foram vencidas antes, com as armas que estavam à disposição de quem as travou.

    Num bom texto publicado no "Blog do IMS", Bernardo Carvalho resume essa espécie de humildade que precisamos ter ao ouvir debates sobre coisas que parecem tão óbvias e pacíficas, como o direito do indivíduo de amar quem bem entender, de ser feliz ou infeliz por causa de um casamento formal ou não: "A militância só parece burra por nos confrontar com um estado de coisas que supomos inconcebível, de tão primário".

    Ou seja, toda vez que nos irritamos com alguma demagogia, oportunismo ou estupidez de quem se engaja numa campanha desse tipo –ocorre bastante, sabemos–, é bom lembrarmos da demagogia, do oportunismo e da estupidez dos que se opõem a ela.

    É uma escolha, sempre: quem deve ser mais atacado, ocupando mais espaço entre as adversativas de um artigo de opinião? Os Estados Unidos são o país onde o presidente Reagan só pronunciou a palavra Aids em 1985, quatro anos depois do surgimento da doença e já com milhares de mortos na conta. Onde 14 Estados tiveram leis "anti-sodomia" revogadas apenas em 2003.

    Na comparação, o que pode haver de manipulado no modo como a sentença da corte americana repercutiu no Facebook –corporação que flerta com o totalitarismo tecnológico, buscando ser protagonista dos debates culturais por meio de algoritmos geradores de efeito-manada– é um aspecto menor.

    O mesmo vale para o Brasil, se pensarmos nos interesses do Boticário (que fez um comercial de Dia dos Namorados usando casais do mesmo sexo) ou da Globo (que vem aumentando a presença gay em novelas).

    Nada disso diminui a sinceridade de quem quis se manifestar sobre a decisão americana colorindo a própria foto nas redes, nem o que há de efetivo nas ações das empresas citadas. Num país cujo congresso está repleto de Bolsonaros e Felicianos, a despeito de um judiciário avançado no tema, são as armas de base disponíveis no momento: mesmo que (no início) restritas a uma elite econômica e cultural, elas ajudam a tornar socialmente constrangedoras as manifestações de intolerância.

    Trinta anos atrás, era impossível ir a um estádio de futebol e não ouvir gritos racistas. Hoje, eles são exceção, e os autores são punidos com apoio majoritário da opinião pública. É uma mudança notável numa luta que está longe de terminar, e que não se deve apenas às regras que temos sobre o assunto desde a Constituição de 1988.

    Uma coisa ajuda a outra. Como o arco-íris generalista ajudará o trabalho cinzento, específico e necessário de sua militância.

    michel laub

    Escreveu até julho de 2015

    É escritor e jornalista. Publicou seis romances, entre eles "Diário da queda" (2011) e "A maçã envenenada" (2013).

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