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    Mônica Bergamo

    Quatro anos após mudar de sexo, Lea T diz que é virgem na nova condição

    04/05/2014 02h10

    No último Natal, ela ganhou um presente especial. "Lea, toda mulher tem que ter uma joia", disse Riccardo, ao entregar a caixinha com um brinco de brilhante.

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    Ela abriu o pacote e chorou. "Ele me trata como marido, mas é casamento sem sexo. Intimamente não temos nada. Somos melhores amigos", diz Lea T à repórter Eliane Trindade, sobre o italiano Riccardo Tisci, o "maridão", um dos responsáveis pelo nascimento de sua "persona" pública.

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    Estilista da Givenchy, uma das grifes mais tradicionais da França, ele a convidou para estrelar campanha da marca em 2010. Nascia uma top. O T, adotado no lugar do sobrenome do pai, o ex-craque Toninho Cerezo, é dele.

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    Os dois eram amigos havia muitos anos, antes de ele ser o todo-poderoso da grife. Um dia, ela fez um desabafo: "Riccardo, não sei o que vai acontecer comigo. Vou ter que virar prostituta?". Lea segue: "Infelizmente, é a realidade. As transexuais estão condenadas ao gueto. Você pode ser prostituta ou o que quiser, o que não pode é ser obrigada por falta de oportunidade. Eu não ia conseguir".

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    Na estreia diante das câmeras, ela vestiu o modelito de militante. "Achava importante contar que eu era transexual e ia ser operada e assim mostrar que naquela condição eu tinha conseguido um trabalho legal."

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    A repercussão foi mundial. "Não imaginava que fosse dar aquele auê. E justamente em uma fase delicada." Lea se encontrava no final do processo de autorização para realizar a cirurgia de mudança de sexo. Fazia, havia dois anos, terapia hormonal e tratamento psicológico.

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    Entrou na roda-viva de "a modelo da vez", com hormônios e emoções à flor da pele morena: "Era uma loucura. De repente, estava em Milão e ia para Paris e de lá para Nova York. Então, aparecia um trabalho no Brasil e tinha que correr pra Itália para consulta ou audiência no tribunal".

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    E o mais difícil estava por vir: encarar a cirurgia em praça pública. Cada passo era divulgado como capítulo de novela. Havia a preocupação de o pai não aceitar a situação. "Aí, publicaram que ele tinha me rejeitado. Mentira. Quando contei, ele disse: 'Tá bem óbvia a coisa. Por que demorou tanto pra falar?'."

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    A mãe a acompanhou nos dois meses do pós-operatório na Tailândia. "A cirurgia é chata, dolorosa. Mas não me arrependi nem posso dizer que é bom fazer. Não quero glamorizar. É muito pessoal."

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    Nem pretende ser exemplo. "Uma menina de 17 anos não pode imaginar que fazendo uma operação de mudança de sexo ela vai ser feliz. A cirurgia pode fazer você viver melhor com o seu corpo pra enfrentar a vida."

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    Está contente. "Eu ficava imaginando que fisicamente poderia sentir falta [do pênis]. Mas já acordei da cirurgia como se sempre tivesse isso [vagina]. Não consigo lembrar de mim com o sexo de antes. Mentalmente, tenho hoje o corpo que eu queria ter."

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    Odeia os pés masculinos (calça 41/42), mas adora as mãos longas e delicadas. O único arrependimento é de ordem emocional: "Eu só me arrependo de não ter amado mais o menino que eu fui".

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    Foi um garoto efeminado desde sempre. "Meu pai começou a perceber quando eu era criancinha." E olha que Leandro, o Leo, era a "melhorzinha lá em casa para o futebol". "Poderia ter sido um craquezinho", diz Lea. "Eu até quis aprender a jogar bola. Meu pai me colocou numa escolinha, mas durou uma semana." É grata a Cerezo, que hoje é técnico no Japão, por nunca ter forçado a barra.

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    Recusa-se a repetir o chavão pós-cirúrgico de que "nasceu de novo". "Conheço meninas operadas que querem esquecer o passado. Não quero cancelar o que fui. Seria um desrespeito com a minha família." Existe, claro, um antes e depois. "Não vou rasgar minhas fotos de criança. Se um dia eu tiver uma relação com um homem, ele vai ter que me ver de Leo, cabelinho curto. Vai escutar minha mãe contar histórias de quando eu era menino."

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    No passaporte carrega seu novo nome: Leandra Medeiros Cerezo. O ex-Leandro ainda se adapta às dores e às delícias de ser finalmente o que é, mas ainda se mostra uma mulher delicada e insegura. "Eu sou muito romântica. Não consigo fazer sexo ocasional. Não tenho aquela segurança no corpo pra encarar uma transa logo de cara. Preciso encontrar alguém que tenha essa compreensão e carinho de poder esperar."

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    Aos 32 anos, diz estar "só, só, só". "Não tive nenhuma história depois da cirurgia. Tá complicado, bebê. Não que fiquei rezando em casa, mas nada que valha a pena registrar. Nem quero fazer a virgenzinha. Pelo amor de Deus, eu não sou. Absolutamente. Mas não rolou ainda."

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    Diz não ter aquela pegada que agrada aos homens. "Eles gostam de mulheres com mais curvas. Não sou sexy", afirma ela. "Sou magrela, com esse cabelão comprido parecendo bruxa."

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    Pensa em encontrar alguém para chamar de seu. "Vou ter, né? Mas prefiro ficar na minha, se tiver que aparecer uma pessoa, Deus vai colocar na minha vida". E o amor não tem sexo definido. "Eu me sentir mulher não tem nada a ver com minha opção sexual, com meu desejo. Sou lésbica? Não sei. Amanhã posso acordar e me apaixonar por uma mulher. Nunca me aconteceu, mas não coloco tudo no quadradinho."

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    Lea diz que sempre foi "quietona". "Namorei muito pouco. Antes, eu me sentia errada." Mesmo nos loucos verões de badalação na Espanha, ao lado de uma turma de famosos, como a atriz Paz Vega. "Em Ibiza, eu era aquele 'serzinho', como diziam meus amigos. Pode perguntar por aí. Quem já foi pra cama com a Lea?"

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    Ela mesma. "Após a cirurgia, comecei a ter curiosidade, a me tocar, porque é um corpo novo. Estou mais relaxada, troco de roupa na frente de outras pessoas." Não se vê no altar. "Não me imagino entrando de noiva na igreja, mas gostaria de adotar uma criança." Hoje, o baby de sua casa, na Itália, é o cão Obi.

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    Acaba de fechar contrato para uma campanha mundial de beleza em 2015. "Achei que era pegadinha, mas já fiz fotos e vídeos." No Brasil, desfilou e fotografou para a Ellus. "Ela é uma personalidade da moda, tem notoriedade global. É linda e descolada", diz Adriana Bozon, diretora criativa da marca.

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    "Não me acho bonita", diz a top. "Aprendi a funcionar para foto. Consigo me encaixar pra vender uma roupa." Credita a longevidade tardia na carreira também à sorte. "Tenho um axé maravilhoso, meus santos e anjos da guarda me protegem."

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    Tem fé de que aos poucos o fato de ter mudado de sexo vai ser um dado importante, mas menor de sua biografia. "As pessoas estão ficando menos curiosas em relação a eu ter feito uma cirurgia, se tenho um pinto ou não tenho um pinto. Minha vida foi linda e continua sendo linda."

    mônica bergamo

    Jornalista, assina coluna com informações sobre diversas áreas, entre elas, política, moda e coluna social. Está na Folha desde abril de 1999. Escreve diariamente.

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