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    Mônica Bergamo

    Letícia Spiller, que vive drag queen em filme, teme retrocesso em direitos gays

    19/10/2014 02h00

    Letícia Spiller surge na tela com collant branco, botas à la Lady Gaga com salto plataforma de 40 cm de altura, peruca branca cacheada e um volume estranho entre as pernas. Ao ver o enchimento, a plateia explode em gargalhadas. "Nooossa, que babadooo", grita alguém.

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    Símbolo sexual desde os anos 1990, quando despontou como a cabeleireira Babalu na novela da Globo "Quatro por Quatro", a ex-paquita que virou atriz de sucesso estreia em um duplo papel. Aos 41 anos, está na frente e também atrás das câmeras.

    A caracterização que provoca risos do auditório, cheio de drag queens e representantes da comunidade LGBT de São Paulo, é a de Rochanna, sua personagem em "O Casamento de Gorete". A comédia fez Letícia também se colocar pela primeira vez na pele de produtora de cinema.

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    Ela reuniu o grupo em um hotel nos Jardins, há algumas semanas, para uma exibição fechada do longa, acompanhada pelo repórter Joelmir Tavares. "Letícia, senta do nosso lado pra você ficar impregnada de drag", chamou Dindry Buck, uma das convidadas, quando ia começar o filme, que chega aos cinemas no dia 27 de novembro.

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    A partir daí foi uma sequência de risadas, a maioria nas cenas de Gorete, uma escrachada e desbocada transformista do interior, vivida pelo ator Rodrigo Sant'anna. "Bicha", "Ai, sua viada", "Engole o show" e "Estão querendo que eu descole meu útero?" são expressões do vocabulário gay ditas pelo trio de protagonistas, que tem ainda Tadeu Mello (Domitila) e Ataide Arcoverde (Marivalda).

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    "É um filme para a família, com classificação de 12 anos. Só não é totalmente livre porque tem um palavrão ou outro", diz Letícia. "Mas me diz quem é que não fala palavrão?" Na produção, ela tem a companhia do filho mais velho, Pedro, 17, fruto do casamento com o ator Marcello Novaes, seu par na ficção na época de Babalu.

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    O adolescente vive uma paixão juvenil por Gorete, quando a protagonista era ainda um menino. "Ele estava um pouco reticente no início. Expliquei que seria bacana fazer porque ele estaria ajudando a sociedade a evoluir", diz a mãe.

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    A "evolução" que ela busca com o projeto é "o combate ao preconceito, a essa coisa horrorosa que é a homofobia". Foi por causa do tabu sobre o tema que ela e o diretor Paulo Vespúcio dizem ter enfrentado dificuldade ao buscar patrocínios para o longa, orçado em R$ 2,7 milhões.

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    A questão foi levantada por uma pessoa da plateia ao fim da exibição. "Muita gente lia o roteiro e já: 'Hum...' [faz careta]. Torcia o nariz, não gostava", respondeu ela. A distribuidora anterior desistiu da comédia sem dar explicação. Agora, o contrato é com a Europa Filmes. O projeto captou recursos via mecanismos de renúncia fiscal, recebeu apoio do governo do Rio e, por fim, conseguiu patrocinadores.

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    "Acho que demoraria mais sem o incentivo do governo", diz ela, que começou o projeto há sete anos. Sem querer se envolver com política ("para mim é uma gosma"), considerou "um começo de avanço" a discussão sobre direitos LGBT na campanha eleitoral.

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    "Mas é triste ver como existem pessoas retrógradas num país com tudo para ser um lugar de cabeça aberta. A maioria da população é machista, preconceituosa." E defende a criminalização da homofobia. "Qualquer agressão, verbal ou física, a qualquer ser humano é crime." No ar na novela das seis, "Boogie Oogie", contratada da Globo até 2016 e escalada para uma trama das sete, ela não cita candidatos nem declara voto, "por questões profissionais".

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    Elogia o governo do Rio pelas campanhas contra homofobia. "Nisso tenho que tirar o chapéu para o governo atual. Tenho muito medo de quem pode entrar aqui, de que haja retrocesso", diz a eleitora carioca. O segundo turno no Estado é disputado por Luiz Fernando Pezão (PMDB), candidato à reeleição e líder nas pesquisas, e pelo senador Marcelo Crivella (PRB), sobrinho do bispo Edir Macedo, da Igreja Universal.

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    Letícia diz sonhar que os governantes tenham "coragem" para melhorar principalmente saúde e educação. "Dá vergonha os serviços não serem de primeiro mundo, com a quantidade de impostos que a gente paga no Brasil. É muita coisa que precisa mudar... E a gente já perdeu a esperança de que mude."

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    Por ora, ela faz militância usando a arte. Com o filme, que acredita ser "uma forma divertida e universal de tocar as pessoas", diz pregar o respeito à diversidade. "Tem amor e leveza. É uma fábula. A princesa é uma caricata, mas é uma dama. E mais digna que muita mulher por aí." Gorete é inspirada na personagem homônima do radialista David Medeiros, do Acre.

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    No mês que vem, Letícia vai de novo se "impregnar de drag" e cair na Parada Gay do Rio para levantar a bandeira do arco-íris com colegas de elenco. "Todos travestidos!"

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    Ela não escolheu ainda o figurino da ocasião. Para sua curta participação como uma "cyber drag queen" em "O Casamento de Gorete", buscou inspiração em cantoras como Shakira e Beyoncé e nas drags Léo Áquilla e Rogéria. "Não sei se vocês viram um pouco de Rogéria ali. Mas eu estava vendo, estava sentindo", disse ela ao grupo paulistano, após assistir ao longa cercada de cores, plumas e paetês.

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    Rochanna "é diva, mas tem um pé no trash, nessa coisa estranha, meio demônia", descreve ela, que aguçou a observação de artistas do gênero para compor o papel. No encontro, ouviu de Tchaka, que faz performances em festas: "Nós, as drags, nos inspiramos em vocês, estrelas, e nas verdadeiras rainhas".

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    Ao tomar Letícia nos braços, com duas colegas, e posar para fotos, fez piada: "Ai, como é bom pegar atriz da Globo, que é levinha".

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    Na emissora, onde estreou em 1989 como paquita de Xuxa e já fez 14 novelas, a loira de 60 kg e 1,70 m vai emendar em fevereiro as gravações de "Boogie Oogie" com as de "Lady Marizete". Na história, será a vilã que quer destruir a favela de Paraisópolis, em SP, para construir condomínios.

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    Entre um folhetim e outro, tenta se preparar para atuar na peça "Dorotéia", com texto de Nelson Rodrigues, ao lado de Rosamaria Murtinho. E engatilha mais três projetos como produtora de cinema, sem se preocupar com reações da crítica ao seu filme de estreia. "Como dizia Mazzaropi, o maior crítico é o público. É ele que me interessa."

    mônica bergamo

    Jornalista, assina coluna com informações sobre diversas áreas, entre elas, política, moda e coluna social. Está na Folha desde abril de 1999. Escreve diariamente.

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