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    Mônica Bergamo

    Ex-mutante Arnaldo Baptista diz que sua fama de 'loki' afasta patrocínios

    02/11/2014 02h00

    Arnaldo Baptista, 66, costumava dirigir um Corvette. Também teve cinco motos e com uma delas diz ter cruzado o Panamá, há mais de 30 anos. Hoje, o meio de transporte do músico é um Fiat Uno impecavelmente limpo, que surge no ponto de encontro marcado com a repórter Marcela Paes guiado por Lucinha Barbosa, 66, mulher dele.

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    "É, hoje sou mais assentado e bem menos 'Hell Angel', admite o ex-integrante do banda Os Mutantes, referindo-se ao clube de motoqueiros que pilotam Harley-Davidson. O ex-companheiro de Rita Lee e Sérgio Dias no grupo cuja formação lendária foi dissolvida em 1972 vive hoje em um condomínio arborizado nos arredores de Juiz de Fora (MG).

    "O Corvette só consegui comprar quando assinei contrato com a Shell na época dos Mutantes, que não foi uma chuva de dinheiro", diz o músico e também artista plástico. De seu lado "anjo do inferno" sobrou pouco. Os interesses atuais são carros elétricos que não poluam, energia solar, vegetarianismo, discos voadores e a pintura. "Nem palavrão ele fala. É educadíssimo", reforça Lucinha.

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    As artes plásticas viraram profissão, que o leva à segunda mostra individual em 20 de novembro, na galeria Emma Thomas, em São Paulo. "Nunca tinha conseguido paz pra pintar, mas, depois de ter ficado na cama do hospital por meses sem saber o que fazer, a Lucinha me trouxe papel e lápis. Não sabia que ia dar nisso", diz. Refere-se ao episódio em que se jogou da janela do quarto andar do hospital psiquiátrico no qual foi internado, em 1982.

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    "Mas eu sabia", interrompe Lucinha, que se aproximou do músico, de quem era fã, na época. "Ele tinha jeito! Só o estimulei a continuar", explica a "Fada Almofada", um dos apelidos que Arnaldo deu à terceira mulher.

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    Os quadros de autoria dele preenchem quase todas as paredes do sobrado. Seu ateliê abriga diversos instrumentos musicais e uma cama de solteiro. É onde o músico dorme, impreterivelmente, até as 14h. "Tenho confuso horário", brinca ele, que vive em um fuso próprio. "As ideias às vezes chegam na madrugada."

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    Suas obras custam entre R$ 1.500 e R$ 7.500. Lucinha conta que o ator Selton Mello comprou quadros de Arnaldo. O surrealismo é uma influência visível nas obras. O belga René Magritte é citado como uma das maiores inspirações e o espanhol Salvador Dalí aparece em releituras. Trocadilhos com o mundo pop também ilustram as pinturas.

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    "Tá vendo aquele ali?", aponta Arnaldo, para a tela de uma mulher deitada e um relógio derretido, que remete à obra "A Persistência da Memória", de Dalí. "É o Salvador Daqui", gargalha o autor. Aponta para outro, selecionado para a exposição. "Olha ali! O Ringo Starrrr? Não, foi Paul McCartney no correio. Entendeu?", ri com o trocadilho "pôr uma carta no correio", ao mostrar uma colagem de uma capa de vinil autografada pelo músico Sean Lennon.

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    O encontro com o filho do ex-Beatle John Lennon e fã declarado de Os Mutantes é lembrado com carinho por Arnaldo. Outra tietagem famosa é o bilhete elogioso escrito ao ex-mutante por Kurt Cobain, vocalista do Nirvana, que se suicidou em 1994.

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    "Eu não conhecia o Nirvana tão profundamente. Depois que ele mandou o bilhete, passei a encarar mais de perto o trabalho deles", diz Arnaldo. "Mas eles reclamam tanto, né? O som é um barulho. Ahh tararatata!", imita, tapando os ouvidos com as mãos.

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    Apesar dos muitos fãs -célebres ou não-, o número de shows na agenda do multi-instrumentista não é constante. Sua próxima grande apresentação será no festival Psicodália, no interior de Santa Catarina, em fevereiro de 2015.

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    Fala de dificuldades em financiar trabalhos. "Quando o [Gilberto] Gil era ministro da Cultura, eu fui até Brasília e falei a respeito de um projeto de um livro que não tinha sido aprovado pela Lei Rouanet. Mas ele, que é amigo meu, me disse uma frase linda: 'Olha, Arnaldo, eu sou ministro, mas não sou ministério'."

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    Para Lucinha, a fama de maluco beleza ou "loki" -que dá título a um dos discos do marido- aumenta a dificuldade. "Deve ser isso. Quando conseguimos autorização para captação, nenhuma empresa se interessa em financiar." A produção do disco "Esphera", iniciada em 2010, parou por falta de verba.

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    Da época em que fazia sucesso com Os Mutantes -ao lado de Rita, com quem foi casado, do irmão Sérgio, do músico Dinho Leme e do hoje produtor musical Liminha- sobraram as lembranças, frequentes na fala de Arnaldo, mas pouco dinheiro.

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    "Quando nós assinamos com a Universal, não tínhamos nem onde ensaiar. Era uma porcaria perto do que os artistas ganham hoje. Mas a vida é assim, erros e acertos. Eu vou me mantendo. Essa palavra manter é importante pra mim", diz o ex-mutante.

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    Um retorno dele à banda, nos moldes da turnê europeia, iniciada em 2006, com o irmão e o baterista Dinho, tendo Zélia Duncan como vocalista, está descartada.

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    "Não gostava dos amplificadores digitais que a gente usava. Sugeri pro Serginho que fizéssemos com amplificadores valvulados [aparelho que reproduz um som mais encorpado, preferidos pela maioria dos artistas de rock saudosistas]. Ele falou: 'Valvulado é frágil e dificílimo de ligar'. Eu pensei na hora: que burro. Como o absoluto está no silêncio, não falei nada."

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    O músico mantém pouco contato com a turma antiga de SP. Hoje, um de seus melhores amigos é Alexandre Cota, dono de um bar em Juiz de Fora, onde às vezes dá "canja". Com o filho, Daniel, 37, da relação com a atriz Martha Mellinger, as conversas são por Skype. "Tive uma neta! Um amoreco. É bonitinha e colorida. Ainda não a conheci porque ela mora no Saara", conta Arnaldo. "Em Israel!", corrige Lucinha.

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    Ele gargalha: "Ah é! Daniel está estudando pra ser rabino e eu sou ateu. Agora ele usa barba grande e parece até que é meu avô". Ele explica que o filho "quer mudar a visão que as pessoas têm dos judeus, de que são 'unha de fome'".

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    Ser reconhecido nas artes plásticas, ter um pavilhão no Instituto Inhotim e comprar um amplificador valvulado que melhore o som para a plateia estão entre os sonhos de Arnaldo. Só faz uma ressalva. "A única coisa é a PVC, a porra da velhice chegando." E leva a mão à boca: "Ai, tem palavrão, então é melhor não colocar na entrevista, né?".

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    Como uma criança, ele se permite cantar mais adiante os versos "Fui andando pelo caminho/ encontrei com uma coruja/ eu pisei no rabo dela/ ela me chamou de bunda suja". E gargalha novamente. "Essa não é tão palavrão, né? É leve". Como ele.

    mônica bergamo

    Jornalista, assina coluna com informações sobre diversas áreas, entre elas, política, moda e coluna social. Está na Folha desde abril de 1999. Escreve diariamente.

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