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    Mônica Bergamo

    Cineasta que fez filme sobre morte do irmão agora busca assassino da mãe

    14/06/2015 02h00

    A empregada doméstica Belmira Burlan é quem abre a porta do apartamento no prédio de três andares no Capão Redondo, periferia de SP. Ela já esperava o sobrinho, o cineasta Cristiano Burlan, 39. A visita foi combinada para que ele entregasse o DVD de um de seus filmes, o documentário "Mataram Meu Irmão" –que ganhou o principal prêmio no festival É Tudo Verdade, em 2013.

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    "Faz dois anos que não volto aqui no Capão. É uma sensação estranha", diz Cristiano à repórter Marcela Paes. O retorno ao bairro –onde viveu parte da infância e quase toda a adolescência– traz lembranças ruins. Foi lá, a duas quadras do apartamento onde ele espera que a tia faça um café, que seu irmão Rafael foi assassinado.

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    "As pessoas acham que esse documentário que eu fiz sobre meu irmão tem a história toda. Eu conto o ínfimo das coisas. O cinema não dá conta da realidade, mesmo sendo um documentário."

    O bairro também foi o lugar onde ele afirma ter tomado dois tiros, um na coxa e outro na parte de trás da cabeça, aos 16 anos.

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    "Parou a Rota e deram geral em todo mundo. Um moleque estava com um baseado e xingou, enfim... Só sei que eles sacaram as armas e atiraram. Levei tiro e me fingi de morto", conta ele. "Põe a mão aqui, ó", diz, pegando o dedo da repórter e colocando no pequeno relevo próximo à nuca.

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    "Eu poderia ser uma pessoa muito mais soturna. Tinha motivo pra sair rasgando dinheiro e dando martelada nos outros [risos]. Mas também não vou ficar aqui fazendo terapia com você", diz o diretor, que hoje mora em Pinheiros, na zona oeste.

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    Belmira traz o café e Cristiano volta ao papo com ela. "Então, tia, tenho uma coisa pra contar. Vou fazer um filme sobre minha mãe."

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    "Jura, Cris? Mas é tão trágica a história dela também. Nossa, as duas histórias são muito trágicas. Que coisa acontece com essa família? Ela era tão bonita, tão bonita", diz Belmira sobre a irmã, que morreu assassinada pelo namorado em 2011.

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    "Elegia de um Crime" começa a ser rodado em outubro e será um híbrido de documentário e ficção em que o diretor vai mostrar sua busca pelo assassino da mãe, que, segundo ele, continua solto.

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    "Eu tenho uma ideia de onde ele está. Existe a possibilidade de eu não achá-lo ou achá-lo. Isso vai ser construído no filme. Acho que é meio um caminho sem volta porque vou mergulhar na história de verdade."

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    A relação de Cristiano com a arte vem da infância. Diz que aos 14 costumava ir para a porta do Theatro Municipal na esperança de assistir a um espetáculo sem pagar. "Eu ficava lá esperando e sempre arrumava alguma entrada porque os casais brigam e sobra ingresso."
    Quando ainda morava no Capão, aos 17, foi contratado como contrarregra de uma peça com o ator Osmar Prado.

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    "Era 'O Fabuloso Obsceno' e ele [Osmar Prado] fazia 18 personagens. Achava impressionante. Pela primeira vez na minha vida eu tive contato com um grande ator. É uma pessoa de muito caráter, me ajudou muito. Até financeiramente, mesmo depois que acabou a peça."

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    Logo depois, o cineasta conseguiu financiar uma ida para Barcelona, na Espanha, com o trabalho de garçom e bicos como ator. Foi para estudar teatro, mas largou o curso quando partiu para a cidade de Tânger "atrás de uma marroquina".

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    A empreitada artística sofreu outra pausa quando conheceu um brasileiro que era soldado da Legião Estrangeira (unidade militar francesa).

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    "Eu me alistei, mas só fiquei três meses. Eu já tinha lido 'Diário de um Ladrão', do Jean Genet [escritor francês que foi expulso da unidade militar]. Então tinha uma ideia do que era a Legião. Eles te transformam em uma máquina, mas eu saí antes disso", afirma ele.

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    Foi ainda na Espanha que Cristiano desistiu de ser ator e começou a fazer filmes. "Dirigi um longa usando uma câmera super-8 com uns amigos lá. O filme também se chamava 'Super-8' [risos]."

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    Desde então, já são 15 filmes, entre curtas, documentários e longas-metragens. Na semana passada, o diretor lançou "Hamlet", uma releitura do clássico de William Shakespeare.

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    "Não escolho os temas. São os temas que me escolhem. Mas tenho atração pelos clássicos. É impossível ir pra frente sem passar por essas grandes obras. Também não sei como fazer comédias."

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    Segundo ele, o longa, que foi codistribuído com incentivo da Spcine, custou R$ 10 mil, valor considerado baixo.

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    "Só usei verba de edital em um curta. O resto dos filmes fiz com o dinheiro que ganho com prêmios e com a ajuda de amigos", explica.

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    Um dos reconhecimentos veio com o Prêmio Governador do Estado de 2013, em que ele recebeu R$ 60 mil. Cristiano aproveitou a presença de Geraldo Alckmin na plateia para fazer um protesto contra a polícia do Estado de SP.

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    "Eu estava com o [crítico de cinema e ator] Jean-Claude Bernadet e ele me disse pra eu ser preciso e para não envergonhá-lo [risos]. Aí eu subi no palco e disse que era irônico que o mesmo governo que premiou meu filme também era responsável pela morte do meu irmão. Ele morreu por uma quadrilha comandada por policiais militares", relembra.

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    O motoboy Anderson Burlan, 30, primo do cineasta, toca a campainha da casa da mãe. Ele também ainda não assistiu ao documentário sobre a morte de Rafael, do qual participa.

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    "Umas pessoas viram no Canal Brasil e vieram falar comigo. Quero ver logo", diz. E aproveita para convidar o primo para ir a um bar próximo ao apartamento de Belmira.

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    O forró em altíssimo volume que sai da jukebox não impede a conversa dos dois. O diretor quer acertar a participação de Anderson em um filme que pretende fazer sobre o universo do rap. O longa, ainda embrionário, será filmado no Capão e também terá a participação da atriz Helena Ignez e do amigo Jean-Claude.

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    "Eu já fiz umas músicas, me chamavam de Alemão da Cohab, mas, na hora de colocar minha profissão, põe motoboy, tá?", diz Anderson à repórter.

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    "Lembra como era aqui há uns dez anos, primo? Era muito ruim, não dava pra ficar na rua depois de anoitecer. Agora melhorou um pouco", diz Cristiano.

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    "Ainda não está bom, mas era pior. Antes, pra 'pegar mulher' nas festas, a gente não podia falar que era do Capão porque elas logo diziam: 'Aquele lugar onde morre todo mundo?'", diz um amigo de Anderson que também participa da conversa.

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    Todos riem. E pedem mais uma cerveja.

    mônica bergamo

    Jornalista, assina coluna com informações sobre diversas áreas, entre elas, política, moda e coluna social. Está na Folha desde abril de 1999. Escreve diariamente.

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