• Colunistas

    Sunday, 05-May-2024 14:36:44 -03
    Mônica Bergamo

    'Artista indigente', militante morto pela ditadura tem sua obra descoberta

    19/07/2015 02h00

    Antonio Benetazzo era um artista plástico e ativista político. Conciliava a luta contra a ditadura militar no Brasil com suas pinturas e desenhos, que gostava de distribuir aos amigos. Recebia elogios. Um dia, no início da década de 1970, foi capturado por agentes do regime. Acabou morto de forma cruel e sepultado como indigente.

    *

    A obra que ele deixou passou ao largo de galerias de arte e museus nas últimas décadas. Ficou espalhada pelas casas de conhecidos e parentes. Agora, uma equipe se propõe a remover as camadas de tinta que deixaram sua produção escondida e resgatar os trabalhos e a história do autor para uma exposição e um documentário.

    "O Benê trazia sempre um pacotinho com uma pintura ou ilustração quando me encontrava", conta Zuleika Alvim, 73, ao repórter Joelmir Tavares. Amiga do artista, ela tem oito criações dele penduradas nas paredes de sua casa, no bairro de Perdizes. A historiadora foi uma das pessoas que colaboraram com o trabalho de Reinaldo Cardenuto, curador do projeto de recuperação da obra.

    *

    Nos últimos nove meses, ele conseguiu encontrar mais de 200 peças finalizadas, além de "centenas" de esboços e rascunhos. Para isso, rodou por 20 casas na capital e em mais quatro cidades paulistas. "Achamos trabalhos emoldurados e outros guardados em fundos de gaveta. Mas todo mundo tentou conservar, ninguém jogou fora", diz o professor da Faap (Fundação Armando Alvares Penteado), especialista na produção artística da época da ditadura.

    *

    "O Benetazzo é ignorado pela bibliografia e pelos estudiosos do período. Mesmo quem pesquisa o tema não conhece", diz ele, que também organiza um livro com as obras. Cardenuto e o colega de Faap André Fratti Costa, que dirige o documentário, foram contratados pela Secretaria Municipal de Direitos Humanos e Cidadania de SP para a empreitada. "Ele é mais lembrado como militante. Queremos colocá-lo na história da arte no Brasil", afirma o cineasta.

    *

    A produção do artista, que nasceu na Itália em 1941, veio para o Brasil criança e se fixou com a família em Caraguatatuba, foi tão intensa quanto sua militância. "Utilizou estilos e técnicas mais variados em pinturas, colagens, representações do corpo feminino, abstrações com cores vibrantes e retratos, além de fotografias", lista o curador, citando o espanhol Francisco de Goya e o russo Wassily Kandinsky como pintores que a obra de Benetazzo evoca. Ele foi um artista revolucionário e um revolucionário artista.

    *

    O italiano obstinado com a volta da democracia ao Brasil foi contemporâneo de nomes que depois ganharam visibilidade, como Sérgio Ferro, Luiz Paulo Baravelli e Claudio Tozzi –com este, criou uma xilogravura para um cartaz da UNE (União Nacional dos Estudantes) em 1968. Naquele ano, ajudou a organizar o congresso da entidade em Ibiúna que terminou com os participantes presos.

    *

    Quando se engajou ativamente na luta armada, diz Cardenuto, Benetazzo estava na iminência de ganhar projeção com sua obra, na segunda metade dos anos 1960.

    *

    A militância na esquerda começou em 1964, ao entrar na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP. A política e a estética sempre andaram juntas para ele, embora o curador da exposição seja cauteloso ao estabelecer relação entre o mundo externo e as criações do autor.

    *

    Concebeu seres disformes em uma série de desenhos em nanquim em 1968, ano do Ato Institucional nº 5. Em outra obra, com a data exata em que o ato que endureceu a repressão no país foi baixado (13 de dezembro), não há mais os monstros grotescos de corpos retorcidos. "Sai o grotesco e entram representações de prazer e mistura de técnicas e cores", analisa Cardenuto. Para ele, as duas obras mostram "a riqueza estética" e "as várias formas do artista de olhar o mundo".

    *

    No ano seguinte, como membro da ALN (Aliança Libertadora Nacional), se lançou à clandestinidade e foi para Cuba treinar táticas de guerrilha. Nessa época, ajudou a fundar o Molipo (Movimento de Libertação Popular), do qual se tornou um dos líderes. Paulo era seu codinome.

    *

    Ao voltar secretamente de Cuba, em 1971, pediu a um amigo para entregar um envelope a Zuleika. "Eram esses cinco trabalhos", diz, apontando a parede da sala, a ex-militante que por dois anos dividira com Benetazzo e outras pessoas um apartamento no edifício Copan.

    *

    A historiadora guarda também um quadro nunca terminado. "Ele pediu para eu comprar umas tintas, uns papéis. E começou a reproduzir uma planta que eu tinha em casa na época", relembra. A pintura foi interrompida por sua captura, na Vila Carrão. No relato de "A Casa da Vovó", livro de 2014 do jornalista Marcelo Godoy sobre torturas e mortes na ditadura, o episódio é descrito como "brutal e traumático".

    *

    Os militares levaram Benetazzo para um sítio em Parelheiros e deram um golpe na cabeça dele. Depois, passaram com a roda de um Fusca sobre seu crânio. No caminho para o Brás, onde pretendiam deixar seu corpo, ele acordou.

    *

    Resolveram voltar. Dessa vez, decidiram exterminá-lo a pedradas. Com a certeza da morte, fizeram de novo o caminho do Brás, onde o cadáver foi jogado na frente de um caminhão em movimento, para simular um suicídio. Era 30 de outubro de 1972.

    *

    "Eu fiquei muito mal, doente", diz Zuleika. "Passei 15 dias com febre e, quando eu me olhei no espelho, eu tinha metade da cabeça branca. Do choque." O guerrilheiro foi enterrado em vala comum, como indigente, no cemitério de Perus.

    *

    "A ditadura foi também um golpe contra a cultura", diz Carla Borges, coordenadora de Direito à Memória e à Verdade da Secretaria Municipal de Direitos Humanos. "O projeto é uma forma de combater a política de desaparecimento e devolver o acesso à obra de um artista."

    *

    A exposição está prevista para o início de 2016 –nos anos 1990, uma mostra menos abrangente foi organizada por Alípio Freire, amigo de Benetazzo. Zuleika é uma das pessoas que vão emprestar suas peças. "Já avisei ao Reinaldo que ele será um homem morto se alguma coisa acontecer com elas", brinca. "Mas fico feliz que agora todo mundo vai saber quem o Benê foi."

    mônica bergamo

    Jornalista, assina coluna com informações sobre diversas áreas, entre elas, política, moda e coluna social. Está na Folha desde abril de 1999. Escreve diariamente.

    Fale com a Redação - leitor@grupofolha.com.br

    Problemas no aplicativo? - novasplataformas@grupofolha.com.br

    Publicidade

    Folha de S.Paulo 2024