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    Mônica Bergamo

    Vocalista do Ira!, Nasi vai para retiro religioso na África buscar 'energia'

    23/08/2015 02h00

    Fim de tarde de domingo. Nasi, 53, solta a voz ao microfone e ajuda a provocar o arrebatamento de dezenas de pessoas ao redor. Canta não uma letra de sua banda, o Ira!, ou de sua carreira solo, mas uma música num dialeto africano, acompanhada de um batuque forte. O público bate palmas, dança e rodopia suas roupas coloridas.

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    A cena se passa no Templo Oduduwa, à beira da praia, em Mongaguá (SP). Ali sua condição de músico famoso é coadjuvante, e ele é só mais um discípulo do sacerdote da religião iorubá Babá King. As veias do pescoço saltam enquanto empresta seu dom artístico à celebração.

    Ao se aproximar do guru, em 2009, o paulistano descobriu "qualidade de vida espiritual e emocional", como relata ao repórter Joelmir Tavares. A cultura iorubá é a matriz africana de religiões como o candomblé e a umbanda. Também promove o culto a orixás e tem rituais que envolvem incorporação e entrega de oferendas.

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    A devoção leva agora o cantor às raízes do culto iorubá: ele vai passar duas semanas em retiro espiritual em Abeokuta, na Nigéria, terra de Babá. Sua chegada está prevista para este domingo (23).

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    Ainda em solo brasileiro, começa o dia no templo do litoral ouvindo a fala do sacerdote, que vive há 33 anos no país. Tem um ar compenetrado, o olhar sereno. Depois, do lado de fora, fuma um cigarro enquanto um cortejo se prepara para levar ao mar oferendas para Iemanjá. Chega seu irmão Airton, o Júnior, também seguidor da religião, falando do jogo que o Palmeiras disputa naquela hora. Os dois fazem brincadeiras.

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    Hoje amigos, eles romperam em 2007. O conflito com Júnior, também empresário do Ira!, envolveu agressão, troca de xingamentos nos jornais, ações na Justiça. Nasi desfez a parceria com Edgard Scandurra e os colegas de banda. E ainda brigou feio e parou de falar com o pai (que chegou a pedir a interdição do filho). Foi nesse "momento bem delicado" da vida que conheceu Babá. E veio o conselho dos orixás: interromper os processos judiciais.

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    "Com certeza deve ter sido uma coisa difícil de digerir, porque ele estava tomado por um temperamento de muita 'porrada', discussão, disputa. Cada um querendo impor a sua verdade", diz o sacerdote, em um corredor do templo, observado com atenção pelo discípulo. O cantor elogia o "pragmatismo" do religioso, que, por sua vez, diz que o artista "sabe ouvir orientações".

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    "Tudo bem que sou roqueiro, até faz parte um pouquinho do imaginário, mas lamento o jeito como ocorreu." As partes se perdoaram. Júnior, à mesa com o irmão durante o almoço comunitário no Templo Oduduwa, voltou a ser empresário do grupo. "Agora que passou, vejo que parece um filme. Já tem até roteiro pronto", diz o músico.

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    Come uma pequena porção do cardápio (composto de arroz, macarrão e carne em quantidades suficientes para as mais de 400 pessoas que circulam pelo lugar ao longo do dia). A fome diminuta é resultado da cirurgia feita no estômago em outubro –devidamente abençoada pelos orixás. Passou de 118 para 76 kg.

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    No período na África, evitando celular e contato com o Brasil, vai se "interiorizar" e fazer iniciações para progredir nos estudos do culto iorubá. "Vou lá buscar axé, que é a energia vital." O recolhimento, com rituais feitos por sacerdotes anciãos que detêm conhecimento ancestral, reúne gente do mundo todo.

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    "Para mim, ir para lá é como um católico ir no Vaticano e apertar a mão do papa." Participou pela primeira vez do retiro em 2013. E foi na volta, "com o axé trazido na bagagem", que surgiu a conversa para a volta do Ira! em 2014, após um hiato de sete anos. "Acho que isso tem a ver."

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    Alguns dias antes de viajar novamente à Nigéria, cercado pela decoração com motivos africanos da sala de sua casa, no Butantã (zona oeste de SP), Nasi solta uma baforada do cigarro e diz: "A minha religião eu não fico pregando, não tento converter. Já não sou chato, o que é muita coisa, né?".

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    Mesmo assim, "converteu", além do irmão, a mulher e uma filha. "As pessoas veem que alguma coisa dá certo", diz ele, que da coleção de vícios antigos –que incluem cocaína, droga abandonada em 1997 após internação, e maconha, largada em 2007 por conta própria– mantém o tabagismo. Também bebe vinho, uísque, caipirinha.

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    "E já basta, viu?! [risos] Mas me dou o direito de às vezes beber, dar vexame... Se droga fosse só ruim, ninguém usava. Mas também tive um calvário grande." Diz que não ficou "mais careta", mas também não é "o louco de antigamente, um fio desencapado".

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    Nascido Marcos Valadão Rodolfo em uma família italiana católica do Bixiga, ele cresceu tendo contato com espiritismo e umbanda. Nos anos 1980, conheceu uma mãe de santo em Salvador (BA) que o iniciou no culto aos orixás. Com consultas a cada seis meses, "era mais uma relação afetiva do que profundamente religiosa".

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    Anos depois surgiu um pai de santo com casa no Baixo Augusta, em SP, "no meio dos inferninhos, era engraçado". Ali começou a entender de ifá, um conjunto de conhecimentos da tradição iorubá que consiste em buscar escolhas corretas para "realinhar o destino", a partir de conversas com babalaôs e indicações dos orixás.

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    Durante o retiro na África, que será registrado por uma equipe que vai transformar a experiência em série ou documentário, ele pretende evoluir na iniciação em ifá. Entre as sugestões divinas, há restrições a comportamentos e até a alimentos que "tiram o axé". No caso de Nasi, ele não pode, por exemplo, comer abobrinha nem milho em grão.

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    Uma vez, passando temporada em sua casa de praia no sul da Bahia, comeu abobrinha "camuflada" em bruschettas, sem perceber. "À noite, dormindo na parte de cima do beliche, caí de cara no chão. Foi grave. Podia ter morrido... Coincidência? Não sei."

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    O músico, que acredita ainda existir "um preconceito com o 'macumbeiro' no Brasil", diz que a busca da espiritualidade "faz parte de uma transformação boa, não uma mudança". "Continuo o Nasi. Tenho meus maus humores, manias, tiques. Não mudei a essência. Só tô um pouquinho melhor para mim mesmo."

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    E conclui: "Parei de olhar para os inimigos externos e passei a olhar para mim. Sou meu pior inimigo. Porque fui eu que me conduzi para momentos de vício, para acima do peso. Os inimigos externos não interessam. Para isso tenho orixá, tenho Ogum".

    mônica bergamo

    Jornalista, assina coluna com informações sobre diversas áreas, entre elas, política, moda e coluna social. Está na Folha desde abril de 1999. Escreve diariamente.

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