• Colunistas

    Tuesday, 07-May-2024 09:18:15 -03
    Mônica Bergamo

    'Adoro ter tido uma vida boêmia', diz Matheus Nachtergaele após parar de beber

    24/04/2016 02h00

    Desde que idealizou e começou a apresentar a peça "Processo de Conscerto do Desejo" (assim mesmo, com sc), sobre o suicídio de sua mãe, o ator Matheus Nachtergaele tem notado que as pessoas ficam preocupadas com ele. "Todo mundo fica muito impressionado quando eu falo disso com tranquilidade. Me perguntam: 'Mas você está bem? Como é que você aguenta?'", diz o ator à repórter Letícia Mori em uma lanchonete nos Jardins, em SP.

    *

    Aos 47 anos, ele conta que, de alguma forma, o tema da morte da mãe se transformou em trabalho –tem uma música, um público, um horário. "Apesar de ser um texto extremamente íntimo, a montagem é como para qualquer outro espetáculo. Horas de preparação de texto, de voz. Minha grande preocupação é não atuar de forma neurótica, como uma espécie de autoajuda pra mim mesmo", afirma.

    *

    "Não quero alegrar o que foi triste, essa não é minha seara. Mas as coisas ruins eu resolvo na análise. No teatro, eu quero uma celebração do que mamãe deixou de bonito e do que ela deixou de vivo -as lembranças que as pessoas tiveram dela, os poemas e um filho", diz, apontando pra si mesmo.

    Ele fala gesticulando, como se recitasse poesia, e sem tirar o sorriso dos lábios. Diz que o suicídio não precisa ser um tabu. "É uma grande dificuldade lidar com isso porque, pra família, é como se fosse uma espécie de falha, um fracasso. Muitas religiões ainda veem como um pecado. Acredito que é um serviço que eu presto, falar disso abertamente."

    *

    Diz que o ato é, em última instância, um direito. "Sou filho de uma suicida, se não achar isso estou perdido. Mas claro que a gente vai fazer de tudo para evitar que a tristeza chegue nesse ponto." E diz que, até hoje, não entende de suicídio. "Acho que ninguém entende, né?"

    *

    "Na minha família durante muitos anos a gente não pôde falar sobre a morte da mamãe, mesmo depois que me deram a notícia." Ficou sabendo aos 16 anos. Seu pai lhe entregou os poemas que Cecília fez antes de tirar a própria vida, em 1968, quando Matheus tinha três meses. "Até então, quando eu perguntava, [a resposta] era 'ah, é complicado' ou 'um dia explico melhor'."

    *

    Pelos poemas, vislumbra que ela tenha desistido da vida pela tristeza e melancolia que sentia. "Mas ninguém imaginava, ninguém esperava. Foi um choque", afirma. Sobre a própria morte, diz que lida com ela como a maioria das pessoas. "Eu a evito", afirma, rindo.

    *

    Com montagem de baixo orçamento, o monólogo foi criado no improviso, sem patrocínio, em um teatro pequeno do Rio. "Apostei na bilheteria. Ninguém da produção dependia disso, me deram muito apoio. Eram duas apresentações durante a semana. Depois voltávamos para nossas atividades." Só mais tarde conseguiu apoio do Itaú por meio de leis de incentivo.

    *

    No começo ele não sabia se iria só recitar os poemas ou fazer algo "mais candomblesco". Decidiu por incorporar a mãe, usando um vestido. "Resolvi fazer a gira", diz, brincando. Impressões do público e de amigos foram ajudando a moldar o espetáculo para que não ficasse muito pra baixo. "Um amigo levou uma amiga e disse que ela saiu de lá meio mal. Então fui mudando algumas coisas."

    *

    Seu pai assistiu só quando a peça chegou a São Paulo. "Achei que ele ia ficar muito triste, mas não, ele ficou emocionado, não deprê", diz o ator, que chamou Jean Pierre Nachtergaele para dançar no palco no fim da apresentação. "Precisamos fazer uma celebração do que é possível diante de uma tragédia. Quero que seja emocionante, mas que termine com um sorriso."

    *

    Matheus toma um café e levanta para fumar um cigarro. Diz que não poderia ter tocado esse projeto em outro momento da carreira. "Tive uma época em que a ausência me incomodava muito. Agora é o momento de superar o luto. Já estou me aproximando dos 50, tenho mais recursos, como pessoa e como ator."

    *

    Relembra os textos que lia e os exercícios que fazia na EAD (Escola de Artes Dramáticas), na USP, onde se formou antes de encarnar personagens marcantes como João Grilo, de "O Auto da Compadecida" (1999). Participou de três filmes que concorreram ao Oscar: "O Que É Isso Companheiro?" (1997), "Central do Brasil" (1998) e "Cidade de Deus" (2002).

    *

    Para ele, os jovens atores atuais deveriam se preparar mais. "Sou muito a favor da formação. Ator é tipo bailarino, tipo pianista, tem trabalho para ser feito antes de abrir o pano. A gente não trabalha com emoção básica. A TV confundiu um pouco isso. Com 23 anos é para a pessoa estar lendo, estudando, não para estar no auge, na capa de revista."

    *

    Elogia artistas que se posicionam "sem rabo preso" em momentos políticos difíceis, como o colega Wagner Moura e o diretor Cláudio Assis, com quem trabalhou em filmes como "Amarelo Manga" (2002).

    *

    Diz que foi contra a instauração do processo de impeachment da presidente. "Me posicionei pela democracia, houve uma votação na qual o país fez a sua escolha. Eu acho um absurdo dizerem que o país está ingovernável. Como assim? Os políticos são nossos funcionários. Sinceramente eu caguei se eles são a favor ou não da Dilma. Deem um jeito, trabalhem, resolvam os problemas."

    *

    Termina o café e passeia pelas ruas dos Jardins. Ele está em SP desde o começo do mês, mas além de encenar e divulgar sua peça, sai pouco. "Estou entediado da vida de hotel, mas cansado para sair."

    *

    Quando não está viajando para se apresentar no teatro ou para gravar um longa, ele divide o tempo entre seu apartamento no Rio e sua casa em Tiradentes, no interior de Minas, onde cria 13 cachorros. Diz que anda levando "uma vida tranquila, caipira" –não tem nem smartphone. "É uma coisa filosófica: tecnologia a gente tem que trocar só quando já esgotou mesmo, quando quebra. E assim eu não fico muito na internet", afirma.

    *

    Conhecido por gostar de vida noturna –chegou até a ser detido por dirigir alcoolizado, em 2013–, ele diz que parou de beber e desistiu da gandaia. "Ai, não tô nada boêmio. Não sei, cansei", conta. Sente falta só dos amigos de boteco –que continuam no boteco.

    *

    "Eu adoro ter tido uma vida boêmia, ter tido um pé na jaca básico. E também estou adorando agora não ter. Aquele projeto de ser mais feliz, né? Eu estava ficando com ressacas grandes. O fígado também estava reclamando..."

    *

    Antes de voltar para o hotel para "dormir um monte" e cuidar da sua cachorrinha mais velhinha, que trouxe pra SP, passa em uma loja de produtos de ilustração e pintura. O ator desenha desde criança. Ele compra lápis e papel e rascunha seu personagem vestido com as roupas da mãe.

    *

    Explica que a tinta amarela com que se pinta no palco é para "iluminar o que era escuro". "Fiz de tudo para que esse meu trabalho fosse luminoso. A tristeza e a morte fazem parte da vida. Precisamos aprender a encontrar a beleza em tudo isso", diz, sem parar de rabiscar.

    mônica bergamo

    Jornalista, assina coluna com informações sobre diversas áreas, entre elas, política, moda e coluna social. Está na Folha desde abril de 1999. Escreve diariamente.

    Edição impressa

    Fale com a Redação - leitor@grupofolha.com.br

    Problemas no aplicativo? - novasplataformas@grupofolha.com.br

    Publicidade

    Folha de S.Paulo 2024