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    Mônica Bergamo

    'Ser artista não é profissão, é diagnóstico', diz Clarisse Abujamra sobre falta de financiamento

    26/06/2016 02h00

    Com apenas uma túnica leve, a atriz Clarisse Abujamra, 69, sobe ao palco do Teatro Sérgio Cardoso numa noite de junho em que a temperatura chega a 11° em SP. Ela não é a menos vestida: o ator Fernando Rocha, que faz seu par na peça, está de costas para a plateia completamente nu.

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    O frio inesperado, no entanto, não é nem de longe a maior dificuldade enfrentada pelos envolvidos na peça "Cenas de Uma Execução". Clarisse tenta montar o espetáculo há cinco anos. Conseguiu autorização para captar recursos pela Lei Rouanet, mas todos os patrocinadores disseram não. "Falavam que não era o perfil que eles estavam procurando no momento", diz ela à repórter Letícia Mori em um café ao lado do teatro.

    O drama faz uma crítica direta à interferência de investidores na arte. Inspirado na história real da pintora Artemisia Gentileschi, do século 16, mostra uma artista que desafia o Estado e os patrocinadores ao retratar os horrores da batalha de Lepanto em uma pintura que deveria glorificar o exército veneziano. "E, regra geral, eles preferem os grandes musicais e peças mais leves", diz Clarisse.

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    Depois de quatro anos batendo na porta de bancos, estatais e outras empresas, surgiu a ideia de tentar financiamento coletivo. Clarisse passou os dois meses de arrecadação mandando dezenas de mensagens no celular todos os dias."Não copiei e colei nada. Escrevi pra todo mundo que eu conhecia, um por um. Foi a Mel Lisboa que me ensinou a fazer isso. Ter que pedir mais de uma vez, essa sensação de passar o chapéu, é um desgaste emocional tão grande que teve dia em que eu sentei e chorei de exaustão."

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    Conseguiu R$ 30 mil pelo site Catarse para fazer a montagem, que a partir de julho estará no Espaço Companhia da Revista. Agradeceu aos mais de cem apoiadores individualmente. A remuneração dos atores ficou por conta da bilheteria. "Eu gostaria, nessa altura da vida, de contar com um certo conforto. Ter uma previsão de uma carreira, saber quais projetos vão dar certo", desabafa.

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    "É o drama de todo produtor no Brasil. [Resolver a dificuldade] não é uma questão de reformular a Lei Rouanet. Nosso problema vem da falta de formação de público. Em 48 anos de carreira eu nunca vi chegar pai, mãe e filho no teatro. Não tem plateia porque ela nunca foi incentivada. As pessoas falam que é caro, mas vão pro cinema, pagam mais e compram uma pipoca e uma Coca-Cola por R$30."

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    Diz que artistas serem acusados de não trabalhar e viver do governo, como aconteceu em meio a polêmicas envolvendo a extinção e o retorno do Ministério da Cultura, é prova dessa falta de formação. "Uma nação que despreza manifestações artísticas é uma nação falida em termos de educação. Se não fosse pela loucura dos artistas, a cultura brasileira estaria enterrada. Ser artista não é profissão, é diagnóstico."

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    "Se tivesse plateia, se conseguíssemos ficar mais tempo em cartaz, não seria um problema se manter pela bilheteria, como é raríssimo hoje dia", afirma Clarisse. Seu ex-marido, o ator Antônio Fagundes, é uma das exceções. Ele conseguiu montar espetáculo sem patrocínio. Investiu R$ 100 mil do próprio bolso em 2013 na peça "Tribos" e sobreviveu dois anos apenas com retorno de bilheteria. Uma das soluções foi reduzir drasticamente os custos de produção –o que Clarisse também tentou em "Cenas de Uma Execução".

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    Ela reuniu um elenco menor do que o original e acumulou os cargos de atriz, produtora e tradutora do texto, de Howard Barker. Entre a peça, a gravação de um filme no Rio e as várias horas que perde no trânsito para ir de seu apartamento, na Casa Verde, ao centro de SP, onde fica o teatro, não tem tido muito tempo livre. "Minha geladeira está vazia porque não consegui ir ao mercado", diz ela, enquanto coloca creme no cafezinho.

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    Clarisse morava em Higienópolis, mas saiu por causa do barulho. "Morro de vontade de fugir de SP, mas tenho a sensação que me fecharia muito no meu casulo."

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    "Está vindo outro modo de viver que eu simplesmente não entendo. Agora sou apenas espectadora. Fico observando meus filhos", diz ela, que teve Antônio, Dinah e Diana durante o casamento de 15 anos com Fagundes.

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    Questionada se é mais difícil envelhecer para as mulheres, a atriz repete uma frase que sua personagem na peça diz ao amante mais novo. "Se você fosse um cara normal você amaria uma mulher mais jovem", recita. E afirma, e tom de conselho: "Ou você se prepara para envelhecer, ou está fo**. Eu sabia que era difícil, mas não que era tanto. Em todos os sentidos: de saúde, de estética, de espaço na sociedade."

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    "A coisa mais difícil é você não se reconhecer quando se olha no espelho. A Clarisse interna –a energia que eu tenho, o tesão que eu sinto, a força de viver– não combina com meu layout. Por isso que eu digo que você tem que se preparar, senão cai na armadilha de ir fazer 550 plásticas ou levantar tanto o peito que vai parar no pescoço."

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    Termina o café e volta ao teatro para subir ao palco, onde essa vitalidade interna fica evidente. "É o único lugar onde me sinto completamente segura. No palco não tenho medo de nada", diz, antes de subirem as cortinas.

    mônica bergamo

    Jornalista, assina coluna com informações sobre diversas áreas, entre elas, política, moda e coluna social. Está na Folha desde abril de 1999. Escreve diariamente.

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