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    Mônica Bergamo

    Recomendado por neta de Cartola, Flávio Bauraqui se destaca em musical

    16/10/2016 02h00

    Um dos maiores teatros de São Paulo, o Sérgio Cardoso, na Bela Vista, estava praticamente lotado na última segunda, dia 10. Na plateia, com capacidade para 843 pessoas, 810 assistiam ao musical "Cartola - O Mundo É um Moinho", dirigido por Roberto Lage. Eram adolescentes, adultos, idosos, casais, famílias...

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    A interpretação da música "No Tom da Mangueira", no segundo ato, é um dos momentos tocantes do espetáculo. Não quero mais amar a ninguém, não fui feliz, o destino não quis o meu primeiro amor, canta Flávio Bauraqui, que faz na peça o sambista que viveu entre 1908 e 1980.

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    De repente, as luzes se apagam. Não é um efeito de cena um blecaute deixa o teatro às escuras. Bauraqui continua cantando, só que agora à capela. Virgínia Rosa, que vive Dona Zica, a última mulher de Cartola, se junta a ele, assim como os demais atores.

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    No meio da plateia, centenas de pessoas fazem de seus celulares pequenas lanternas como num show de rock. Segundos depois, as luzes voltam e, com elas, os aplausos.

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    Diante da interpretação segura e precisa, o público não poderia imaginar que Bauraqui enfrentava uma de suas crises de asma. Havia tossido algumas vezes enquanto se maquiava. Em cena, porém, ele soube controlar as dificuldades de respiração.

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    Bauraqui chega ao teatro pouco mais de duas horas antes do início do espetáculo. Após 25 minutos de maquiagem, sobe ao palco para exercícios de aquecimento de voz. Ele canta desde as primeiras peças na adolescência em Santa Maria, no interior gaúcho, onde nasceu. Mas agora, aos 50 anos, percebe que está mais preparado para soltar a voz. "Me sinto mais cantor do que nunca", diz ao repórter Naief Haddad.

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    O primeiro ato mostra o jovem Angenor (isso mesmo, Angenor) de Oliveira, apelidado de Cartola graças a um chapéu que usava quando trabalhava como pedreiro. Neste início, a peça retrata os hábitos boêmios do rapaz na Mangueira, que o levam a ser abandonado pelo pai, Sebastião (Augusto Pompeo).

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    Aparecem ainda a amizade com o também músico Carlos Cachaça (Eduardo Silva), seu principal parceiro, e as primeiras composições que se tornaram conhecidas, como Divina Dama.

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    A voz límpida, o gestual tímido e a postura ereta aproximam Bauraqui de Cartola, mas o ator foge da tentativa de imitar o sambista, o que, segundo ele, daria um tom cômico à interpretação. "Vou como um dragão pra cima de quem diz que é uma imitação", brinca o ator, que prefere falar em "homenagem".

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    No intervalo, ele volta à maquiagem a fim de ganhar a aparência de um homem mais velho. Uma sombra escura é passada sobre o nariz para evidenciar uma rosácea, doença de pele que acompanhou Cartola nas últimas décadas de vida.

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    O segundo ato apresenta as fases de ostracismo do compositor, entre os anos 1940 e 1950. O jornalista Sérgio Porto, que ficou conhecido como Stanislaw Ponte Preta, é quem o descobre como lavador de carros, em Copacabana. As atenções se voltam, mais uma vez, ao compositor de "Chega de Demanda".

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    Ao lado de Dona Zica, Cartola entra na sua década de ouro, os anos 1970, período em que grava clássicos como "As Rosas Não Falam", "Acontece" e "Alvorada". O ápice do musical acontece nesta segunda parte, quando Bauraqui, Virgínia Rosa e Pompeo, juntos, cantam "O Mundo É um Moinho".

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    Uma lenda, aliás, acompanha essa música. Cartola teria feito a canção para Creuza, que era sua enteada quando ele estava casado com Deolinda, sua primeira mulher. Segundo essa versão, o compositor temia que a jovem Creuza se entregasse à prostituição. "Já anuncias a hora de partida/Sem saber mesmo o rumo que irás tomar".

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    Neta de Dona Zica e diretora do Centro Cultural Cartola, no Rio, Nilcemar Nogueira nega com veemência essa versão, que se tornou corrente. Segundo ela, Creuza já era adulta nos anos 1970, quando "O Mundo É um Moinho" foi composta. O sambista, diz ela, escreveu a letra após ouvir a história de um amigo, que era pai de uma filha adolescente.

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    Nilcemar não é neta biológica de Cartola (ele não teve filhos nos três casamentos), mas ela o considera seu avô e é a principal responsável pela preservação da sua obra. Quando o produtor do musical, Jô Santana, falou com Nilcemar pela primeira vez sobre o projeto, ela lhe pediu que Flávio Bauraqui fosse o protagonista.

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    Nilcemar havia conhecido o ator em "Obrigado, Cartola", peça que fez curta temporada no Rio, em 2004. Àquela altura, era nome em ascensão no teatro e no cinema, elogiado pela interpretação da travesti Tabu no filme "Madame Satã" (2002). Depois viriam longas como "O Senhor do Labirinto" (2010).

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    Foi difícil o caminho até se tornar um ator de renome. Depois de participar de grupos teatrais em Santa Maria e em Porto Alegre, Bauraqui chegou ao Rio aos 27 anos, com objetivo de manter a carreira nas artes cênicas. Contudo, sem chance nos palcos, trabalhou como porteiro durante cerca de quatro anos.

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    Incentivado pelos moradores, passou a acumular as funções de porteiro e professor de teatro. "Esse crioulo metido a artista", disse, certo dia, o síndico. Uma moradora que ouviu a ofensa chegou a ameaçar o administrador do prédio, dizendo que o levaria à Justiça.

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    Nesta época, o ator e modelo Beto Simas, que vivia no condomínio, indicou Bauraqui para um espetáculo chamado "Forrobodó", que estava sendo montado pelo diretor André Paes Leme. Com o sucesso da montagem, Bauraqui começou a se tornar conhecido no meio teatral carioca. Daí para a frente, como diz, houve "uma avalanche, um peça atrás da outra".

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    "Finda a tempestade", como cantou Cartola em "O Sol Nascerá".

    mônica bergamo

    Jornalista, assina coluna com informações sobre diversas áreas, entre elas, política, moda e coluna social. Está na Folha desde abril de 1999. Escreve diariamente.

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