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    Mônica Bergamo

    Destruir Lula é roubar a voz dos pobres, diz sociólogo Domenico De Masi

    27/11/2016 02h00

    O sociólogo italiano Domenico De Masi, 78, é um senhor de aparência simpática, do tipo que gesticula bastante. Na conversa com o repórter Joelmir Tavares, chegou a derrubar a xícara de café na mesa ao mexer as mãos.

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    Fã declarado do Brasil, país que frequenta e estuda há 30 anos, ele abriu na quinta (24) o Fórum do Amanhã, em Tiradentes (MG). O tema de sua mesa no seminário foi "Qual o sonho brasileiro?". Antes, o italiano passou por Curitiba e São Paulo, onde um de seus compromissos foi jantar com Fernando Henrique Cardoso, de quem é amigo.

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    Professor da Universidade La Sapienza, em Roma, De Masi é conhecido por conceitos como "ócio criativo" (aliar trabalho, estudo e lazer ao mesmo tempo) e "teletrabalho" (produção a distância facilitada por meios tecnológicos).

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    Sua mulher, Susi Del Santo, amante da língua portuguesa, fez as vezes de tradutora na entrevista, em que o sociólogo falou de assuntos como o impeachment da presidente Dilma Rousseff, a transformação dela e de Lula em "delinquentes" e a eleição de Donald Trump nos EUA.

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    SONHO BRASILEIRO

    Não existe um único sonho. Cada classe social tem o seu. Na favela o sonho é a instrução ou comer. O sonho global do Brasil corresponde a se tornar uma nação capaz de dar um grande modelo de vida ao mundo. A sociedade pós-industrial, diferentemente das precedentes, é sem modelo. O Brasil há 500 anos vem imitando a Europa e os EUA. E não tem que copiar. É obrigado a criar um modelo.

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    O Brasil é um pouco infantil. Porque no fim de 2014 Lula era um grande personagem e Dilma também. Passado 2014, Lula é um delinquente e Dilma também. Essa transição foi rápida, uma transição infantil. Não foi madura.

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    Por quê [isso ocorreu]? Não sei. Olhando da Europa, lembro que durante o período de Lula o Brasil era feliz. Ele era um mito, as pessoas choravam diante dele. Dilma era um mito também no primeiro mandato. Porém em dois meses Dilma passa a ser odiada. Quem olha de fora não entende. Só um povo infantil faria uma coisa dessa.

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    O modelo de sociedade não deriva da elite, mas da cultura popular. E a cultura popular do Brasil tem grandes valores, como o de acolher bem. A Europa está demonstrando que não acolhe bem imigrantes. Só os brasileiros não amam o Brasil. Não sou eu que digo isso, é Nelson Rodrigues. O Brasil não é popular no Brasil. Sobretudo entre a elite.

    OS INTELECTUAIS

    Há duas características: uma grande inteligência social e uma grande coragem. Os intelectuais brasileiros têm o dever de ter a consciência da importância do Brasil. São muito críticos ao país, e uma crítica global, não de classe. Intelectuais passados, Gilberto Freyre, Darcy Ribeiro, eram críticos à elite, mas orgulhosos do modelo brasileiro.

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    Fiquei muito contente quando o Brasil perdeu de 7 a 1 para a Alemanha. Pensei: chega ao fim esse mito do futebol. O Brasil tem tantas coisas maravilhosas. A dança, a literatura, a pintura, a arquitetura, o cinema, a sociologia. Cito Fernando Henrique [Cardoso]. Quando eu era professor da Universidade de Nápoles, usava os livros dele. Os alunos não o conheciam, e ele é importante. Não é que o povo brasileiro tem complexo de vira-lata. São os intelectuais que têm. Um morador da favela não tem complexo de vira-lata.

    A CORRUPÇÃO

    É interessante porque o Brasil descobriu pela primeira vez em sua história a corrupção. Que maravilhoso, porque o mundo conhece a corrupção desde sempre. Desde as obras de Shakespeare, Ésquilo, Sófocles. E o Brasil descobriu em 2014 [irônico], com Dilma. Acredito que há corruptos aqui desde o início. Estava no Rio e assisti ao último debate de 2014, com Aécio Neves, Dilma, Marina Silva. [Com expressão de incredulidade] Nenhum candidato disse a Dilma que ela era corrupta. Em dois meses, "pá", "pá" [faz gesto com os braços para indicar mudança de lado]. Foi de repente.

    OS LIBERAIS

    É um problema mundial: o grande retorno do neoliberalismo. Em todo o mundo há uma reação contra governos de esquerda. É uma coisa muito interessante, que como sociólogo percebo, mas não consigo explicar. No Brasil houve também um trabalho midiático. Em dois, três meses, tudo foi feito [no impeachment].

    A RUA

    Foram consequência do trabalho da mídia [os protestos contra Dilma]. Era organizadíssimo! Esse foi o grande triunfo midiático do mundo!

    AS MÍDIAS SOCIAIS

    Trump é um exemplo disso [influência das mídias sociais]. Antes disso, [Barack] Obama também. Acredito que é uma primeira face da mídia social, a comunicação sem reflexão, enquanto na televisão a comunicação é com hiper-reflexão. É tudo estudado nos mínimos detalhes. As mídias sociais se dirigem à "pancha" [estômago], de estômago para estômago. Já a TV é um instrumento de cérebro que se dirige ao estômago. Ela começa a criar uma certa atmosfera, e a mídia social se encarrega do resto.

    OS MONSTROS

    Não entendo de modo ofensivo dizer que o Brasil age de modo infantil. É uma constatação, de uma presença muito forte do estômago em detrimento da cabeça. Diz-se que "o sono da razão gera monstros". Se só funciona o coração, surgem os monstros. Como Hitler, Mussolini. Quando se inicia um movimento de grande emotividade, é um momento muito perigoso.

    TRUMP

    A presidência de Trump será um impulso liberal para todo o mundo. No Brasil, um efeito da social democracia no Brasil foi a redução da distância entre ricos e pobres. E isso fica em risco. Mas eu espero que o Brasil resista.

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    Um dos erros de Dilma é que ela implementou uma política mais liberal que a de Lula. Creio que, quando um governo é social-democrata, deve fazer política social-democrata. Não pode ter um ministro da Fazenda que é neoliberal. Ela fez uma mistura.

    OS POBRES

    Hoje o Brasil está precisando de uma forte reflexão. Há um número de pobres altíssimo. E eles não têm uma voz. Não há um papa Francisco aqui. Lula foi a grande voz dos pobres, quando era sindicalista. A última coisa que foi retirada do pobre foi Lula.

    OS RICOS

    É a grande vitória dos ricos sobre os pobres do Brasil. Desmitificar Lula é um crime. Mesmo que ele fosse um criminoso. Mandar policiais levarem Lula para depor [a condução coercitiva dele, em março] é tolher um mito. É um crime.

    O IMPEACHMENT

    Não sei. Mas é estranho que um povo mude de ideia em dois meses. A impressão externa é que foi um golpe. Mas eu acredito que a dinâmica mudou. Até o que se entendia como golpe mudou. Quando se diz essa palavra, se pensa em militares, de noite, com tanques. Mas um golpe se prepara também pelos jornais, pela televisão.

    A JUSTIÇA

    A Operação Mãos Limpas levou a uma limpeza da classe política italiana. Mas é um modelo que fica nos limites da democracia.

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    Quem tirou a maior vantagem foi [Silvio] Berlusconi. E ele foi para a Itália uma tragédia! Foram 20 anos do fascismo de Mussolini e depois 20 anos de Berlusconi. Mas Berlusconi não era Mussolini. Esse é o fato positivo, mas também o negativo. Porque não foi criada uma resistência. Quando há um ditador, há resistência. Mas, se não é ditadura...

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    A Mãos Limpas acabou com a antiga classe dirigente, só que a velha classe não preparou uma nova. Mas isso não é culpa dos juízes. No Brasil se crê que a situação é mais ou menos igual. Isso é perigoso. Minha impressão é que o povo brasileiro está utilizando Lula e Dilma para liquidar tudo que é negativo.

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    O magistrado deve cumprir seu dever apesar das consequências. Isso é um problema político, se resolve na sociedade política. Mas foi um grande escândalo no mundo a divulgação da gravação de um telefonema de Dilma a Lula [em março]. Os presidentes têm total autonomia. Não se pode grampeá-los. Isso não pode, não existe. Mas o magistrado deve fazer seu dever, sua obrigação.

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    A corrupção é sempre ruim, porém, se é na esquerda, é ainda mais grave. Sou de esquerda, mas se Dilma, se Lula, são julgados desonestos, têm que ser punidos.

    mônica bergamo

    Jornalista, assina coluna com informações sobre diversas áreas, entre elas, política, moda e coluna social. Está na Folha desde abril de 1999. Escreve diariamente.

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