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    Mônica Bergamo

    'Seria triste ter 23 anos e cabeça de 17', diz a youtuber Kéfera

    04/12/2016 02h00

    De cabelo bagunçado e com os olhos quase fechando, a youtuber Kéfera Buchmann entra morrendo de sono no set do filme "Restô". É cedo e nenhum outro ator do elenco chegou ainda.

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    "Oooi. Nem sei onde estou ainda. Bom dia", diz ela, bocejando, ao cumprimentar a repórter Letícia Mori. A filmagem começa duas horas depois, mas a curitibana não corre o risco de se atrasar para seu novo trabalho como atriz. Formada há anos, está só em seu terceiro filme. O primeiro foi independente e o segundo, "É Fada!", infantojuvenil.

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    Kéfera é conhecida mesmo por seu canal no YouTube, o terceiro maior do Brasil, com 9,8 milhões de inscritos. Ela começou em 2010, aos 17 anos, quando era uma atriz iniciante. A ideia era divulgar sua atuação, mas acabou virando profissão: youtuber.

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    Seu canal tem paródias –a da música "Bang" chegou a ter mais visualizações que a original de Anitta– e vídeos falando com bom humor de situações do cotidiano –de nojo de sujeira na pia a problemas de relacionamento. Ela acumulou uma legião de jovens fãs (a maioria garotas adolescentes), embora não seja tão conhecida entre o público mais velho.

    A atriz se tornou uma marca valiosa (ela não divulga o quanto cobra por parceria), mas diz que seu sonho mesmo é sentar com um diretor e passar um texto, como faz nessa manhã de terça. Quando o ensaio começa ela já está a todo vapor, com um terninho para interpretar uma consultora de banco. No longa da Damasco Filmes, a youtuber fará o par romântico do protagonista, interpretado por Cássio Gabus Mendes.

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    Com status de especialista em internet e palestrante contratada para eventos sobre o assunto, no set ela parece uma estagiária ansiosa para fazer tudo direitinho: chega cedo, pergunta onde pode ajudar, revê as cenas com atenção, não tira o olho do diretor enquanto ele dá instruções.

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    "Quero explorar esse lado. Estou sedenta por papéis. Quero fazer uma vilã, um papel gay, uma coisa superdramática, um infantil, um bem tenso. Quero descobrir e quero brincar. Tô que nem um cachorrinho filhote que chegou e tem alguém com uma bolinha para brincar", diz a atriz.

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    "Ela é maravilhosa como atriz, superaberta, está sem vícios. Só tenho que dar uma segurada na ansiedade, porque ela tem outro ritmo. O cinema é mais lento, nesse tempo que ela ficou sentada aqui, faria uns 20 vídeos", diz o diretor, André Pellenz.

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    Se esforçando para mostrar seu lado mais sério, Kéfera dá uma segurada no descaramento e na descontração, que são sua marca on-line. "Ninguém é aquela pessoa o tempo todo. Imagina se na leitura de roteiro eu ficasse 'ah-rá, uhul, eee' [faz caretas e põe a língua pra fora]. As pessoas iam falar: 'meu Deus, tira essa menina daqui, vamos mandá-la para um hospício. Ela não tá bem'."

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    Vira e mexe um palavrão escapa. "Então, enfia no c*, né, porque não tem onde colocar", diz Kéfera, casualmente, quando o diretor pergunta o que fazer com um papel que ela usa em uma das cenas. Outras vezes ela se corrige. "Ser uma mulher entre os maiores no YouTube já é um puta negócio... Puta! Um mega negócio", se policia, falando para o gravador. "Quero que as pessoas conheçam outras Kéferas. Tem a do YouTube, que fala palavrão, é caricata e muito alegre. Existe a atriz, que é séria, que está preocupada com o texto, fazendo pesquisa sobre o personagem, focada. E existe a Kéfera pessoa."

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    Seus fãs costumam reagir a mudanças com desconfiança. "Quem fala 'você não é mais a mesma' também não vai ser a mesma pessoa daqui a três meses. Quando comecei estava com 17 anos. Ao longo desses seis anos, imagina quanta coisa não muda na vida de uma pessoa? Triste seria se, com 23, eu tivesse com a cabeça de 17", diz ela, que nesse meio tempo deixou a casa dos pais para morar sozinha em SP e começou a namorar o youtuber Gustavo Stockler. Os dois se conheceram vendo vídeos um do outro.

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    "Ataques de estrelismo" Kéfera jura que nunca teve. Desmente mais uma vez uma matéria que dizia que ela tinha pedido para não ser incomodada em um voo onde ninguém a havia reconhecido.

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    "Nem peguei avião nesses dias! Se vão inventar um ataque, que façam uma coisa que tem chance de ser real, né, que inventem que eu tive ataque de estrelismo com o Cassio, no set", diz, rindo. "Quem me conhece sabe que eu não sou assim. Não é a primeira notícia falsa que esses 'jornalistas' [faz o sinal de aspas com as mãos] publicam sobre mim."

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    Sobre deslizes reais ela fala tranquilamente. Um vídeo em que se fantasiava de Globeleza, por exemplo, está entre os que ela não faria hoje. "Na época eu nem sabia que existia 'black face' [prática de pintar o rosto para satirizar os negros]. Achei que estava fazendo uma homenagem. Não sabia que era ofensivo, que era racismo. E nem foi comentado na época. Fui saber anos depois que aquilo era errado", diz a atriz. "Parece que estão obrigando todo mundo a saber sobre tudo. Por exemplo, se você fala 'um travesti' e o certo é 'uma travesti', dizem que você é transfóbica. Não, eu não sou, só não sabia. Desculpa. Eu posso aprender com um erro meu."

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    Já é quase noite quando a gravação das três cenas que ela faria no dia termina. Antes de sair para outro compromisso, a atriz conta que feminismo é outro assunto do qual não se falava tanto quando ela começou. "Para mulher na internet é muito difícil. O que tem de homem babaca falando 'mais uma querendo chamar atenção'. Eu escuto isso desde 2010. 'Bonitinha, mas devia fazer vídeo no Redtube [site pornô]'. Tinha gente falando de estupro corretivo."

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    "Machismo é algo que eu conheço", diz ela, que no entanto hesita em se declarar feminista. "Não me considero porque não vou pra manifestação, não levanto bandeira. Mas sou grata pelas feministas existirem. Só não quero que achem que tô querendo falar isso agora só para aparecer. Mas claro, acho importante a equidade entre gêneros. Ajudo com algumas coisas. Quando surgiu aquela polêmica do "bela, recatada e do lar" [adjetivos dados à primeira-dama, Marcela Temer, que geraram uma campanha de mulheres contra o estereótipo], eu fui totalmente contra [esse clichê]: falo palavrão, falo o que penso."

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    "Nesse sentido então eu até lutava pelo feminismo. Sempre protestei: 'gente, mas qual o problema de uma mulher falar palavrão?'. Diziam que uma coisa é uma mulher falando c*, outra é um homem falando. Eu respondia: 'os dois continuam tendo c*!", conta, e dessa vez não evita o nome feio.

    mônica bergamo

    Jornalista, assina coluna com informações sobre diversas áreas, entre elas, política, moda e coluna social. Está na Folha desde abril de 1999. Escreve diariamente.

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