• Colunistas

    Saturday, 18-May-2024 22:35:08 -03
    Mônica Bergamo

    Quem apoia a volta da ditadura são pessoas doentes, diz Zélia Duncan

    30/04/2017 02h00

    Qualquer história contada na voz grave de Zélia Duncan, 52, ganha involuntariamente um ar teatral. Como quando ela relembra, apontando um arrepio no braço, a primeira vez em que, "jovenzinha", ouviu "Alegria, Alegria", de Caetano Veloso.

    *

    "Dava um nó na cabeça da gente. Era uma porteira tão aberta para tudo", diz a cantora ao repórter Joelmir Tavares. E declama os versos da música: "Eu tomo uma Coca-Cola/ Ela pensa em casamento/ E uma canção me consola/ Eu vou/ Por que não?".

    *

    A performance e o tema da conversa não são um acaso. Ela está no intervalo de um dos ensaios de "Alegria, Alegria", musical sobre a Tropicália que estreia no dia 11 de maio no Teatro Santander, em São Paulo. Sua personagem, sem nome nem profissão, é a narradora que conduz o show. No papel de atriz, Zélia se vale da experiência acumulada no show "Totatiando", que lançou em 2011 e reunia música e atuação.

    *

    "Regina Braga [diretora da montagem com letras de Luiz Tatit] me ensinou muito. No teatro você tem o vazio e tem que criar do nada, só tem o seu corpo e o seu sentimento. Então reza para você ter algum talento. Às vezes eu penso: cacete, quanta gente para enganar!"

    *

    No ensaio, Zélia anda de lá para cá com os braços afastados do corpo e as pernas rápidas. Troca ideias com Moacyr Góes, o diretor, que foi seu professor em um curso de teatro que ela fez na CAL (Casa das Artes de Laranjeiras), no Rio, nos anos 1990. "Ela manteve algo vital desde aquela época, que é a disciplina", diz Góes. "E aqui não assumiu uma postura de prima-dona, o que deixou todo mundo à vontade", pontua.

    *

    "Não posso fingir que não tenho um protagonismo, mas no fundo sou só um pedacinho. Tô exercitando isso de estar no bolo, sabe? De manter o ego na coleira e ele aparecer quando tem que aparecer", diz Zélia.

    *

    A cantora, que despontou na música no início dos anos 1990, se define como "da geração que trabalhou muito, carregou amplificador". "Quando eu estourei, minha vida mudou, mas, talvez por ser um pouco mais madura, eu nunca achei que o sol nascia para me aquecer. Nunca caí nessa armadilha."

    *

    Diverte-se contando que seu público "já está acostumado a ser decepcionado" por ela. "Cada hora eu faço uma coisa. O cara vai para ouvir 'Alma' e 'Catedral', entra no teatro e eu tô fazendo Luiz Tatit, ou Itamar Assumpção, ou uma turnê de samba. O fato de ter feito sucesso em alguns momentos não me garante nada. O maior risco para um artista é ele não se arriscar."

    *

    Ela ergue o indicador desenhando um círculo no ar: "O negócio roda, sabe? Quando você está aqui [no alto], querem saber até que papel higiênico você usa. Quando está aqui [embaixo], não quer dizer que esteja mal. Você está se reciclando, ensaiando, viajando." Reservada sobre a vida pessoal, Zélia terminou no ano passado um relacionamento de dois anos com a atriz Cláudia Netto.

    *

    Zélia diz que se vê sentindo "quase uma inveja" da parte dos 15 colegas (com idades de 23 a 37 anos) que só agora fica íntima das canções tropicalistas incluídas na montagem. "É um impacto", descreve. A maioria das músicas cantadas em cena é de Caetano Veloso, ídolo dela.

    *

    Ela discorre sobre o prazer de resgatar com o trabalho o movimento artístico que, na ditadura, "usava a poesia como arma e tinha a liberdade como transgressão". E de fazer isso justo agora, "num momento tão sombrio do Brasil, que lembra a censura em tantas coisas".

    *

    "No primeiro dia de ensaio, peguei trânsito para chegar porque tinha uma manifestação com meia dúzia de zumbis com cartazes: 'eu apoio a volta da ditadura'. Pessoas doentes. Parecia até que era o Moacyr que tinha armado, como um laboratório, sabe? [risos] Quase abri a janela e fiz um gesto [obsceno]. Tive náusea, pensei: será que tomei um ácido?"

    *

    Diz respeitar artistas que "simplesmente querem cantar músicas de amor" e deixar de lado a política. "Mas eu não consigo ficar quieta. Me coloco, falo, participo. No dia 8 de março fui para a Marcha das Mulheres, no Rio. Acho que a coisa mais importante hoje se chama feminismo, por tudo que significa de humano."

    *

    Moradora da Urca, a cantora vai para a rua também para praticar corrida. Participa até de maratonas. A atividade é sua terapia e aliada, principalmente com a chegada da menopausa. Zélia está se livrando "dos calores" com ajuda médica e reposição hormonal. "E tem que fazer exercício. Não tem opção."

    *

    Como detesta a ideia de ter que ir de carro para um lugar onde possa correr e não se adaptou bem a sair em disparada pelas ruas de São Paulo, fez matrícula numa academia perto do hotel onde se hospeda na temporada paulistana, durante o musical. E aí vai de esteira mesmo -naquela manhã, fez 5 km.

    *

    No fim de semana anterior, teve a companhia do amigo Drauzio Varella, outro corredor. Com o médico (e marido de Regina Braga, sua ex-diretora), atravessou 15 km do centro, cruzando locais como o viaduto Santa Ifigênia.

    *

    "É minha fase mais magra. E agora é a hora mesmo, porque quando bater 60 fica mais difícil. Mas envelhecer não precisa ser o fim do mundo. Eu era amiga da Cássia [Eller] e sofro até hoje por ela não estar mais aqui. Pô, que merda, uma pessoa tão jovem morrer [a cantora tinha 39 anos]... Só envelhece quem sobrevive. E eu prefiro estar viva."

    *

    A produção do espetáculo interrompe o papo. Zélia precisa voltar ao ensaio, minutos após dizer que, para ela, se misturar a jovens talentos do teatro musical e aprender novas coisas "é viver". "Pensei: tem Moacyr, tropicália, esses atores juntos... Me joguei! Me chamou e eu vou, né? Por que não?"

    mônica bergamo

    Jornalista, assina coluna com informações sobre diversas áreas, entre elas, política, moda e coluna social. Está na Folha desde abril de 1999. Escreve diariamente.

    Edição impressa

    Fale com a Redação - leitor@grupofolha.com.br

    Problemas no aplicativo? - novasplataformas@grupofolha.com.br

    Publicidade

    Folha de S.Paulo 2024