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    Mônica Bergamo

    Adolescência é a hora de abrir a cabeça, diz novo autor de 'Malhação'

    14/05/2017 02h00

    Cercado de notinhas de papel com nomes de personagens, o cineasta Cao Hamburger, 55, estava ansioso em seu escritório na Vila Madalena, a poucos dias da estreia da nova temporada de "Malhação", escrita por ele. Ela entrou no ar na segunda.

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    "Tenho um pouco de medo. Nunca tive um projeto tão grande. É todo mundo meio técnico de futebol, né? Todos vão opinar", diz, com uma voz mansa e um jeito introvertido, à repórter Letícia Mori.

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    Ele assume o roteiro da novela voltada para adolescentes em um momento em que a TV aberta tem perdido cada vez mais o público jovem para canais pagos e outras plataformas. Cao diz que "não tem a menor esperança" de trazê-los de volta para a televisão. "A gente tem que ir encontrar o jovem onde ele está. Hoje eles veem no celular, no computador. Estamos trabalhando as multitelas e a presença nas redes sociais."

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    Conhecido por seus produtos infantis de sucesso, como "Castelo-Rá-Tim-Bum" (Cultura), Cao também não é estranho ao universo adolescente, mas precisou se adaptar à revolução tecnológica. "Já tenho três grupos no Whatsapp", diz, orgulhoso. Também criou, auxiliado pelo filho Tom, 26, uma página no Facebook. "Logo depois ele me bloqueou porque eu ficava perguntando o que eram as coisas que ele escrevia", conta, rindo.

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    "Houve uma evolução das tecnologias, mas, no fundo, alma do adolescente é a mesma", diz Cao, que "foi a campo" participando de mais de dez encontros com grupos de adolescentes de escolas particulares e públicas. "O que chamou a atenção não foram as diferenças, mas as semelhanças. O Brasil é uma sociedade muito desigual e separada, ricos e pobres convivem muito pouco. Mas na realidade não somos tão diferentes."

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    "A diferença é social e cultural, mas as questões internas, a alma dos jovens, são muito parecidas. É aquela pessoa que ainda não é respeitado como adulto, mas também já não é criança, já não enche mais a casa de alegria, como dizem os Titãs. Que está tentando encontrar seu lugar."

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    Novato no mundo dos folhetins, ele disse que não tinha a menor condição de fazer novela quando a Globo sugeriu que assumisse "Malhação". "Foram vários encontros até o Silvio de Abreu [diretor do departamento de dramaturgia] me convencer", afirma.

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    Acredita que o episódio da última temporada acusado nas redes sociais de ser machista e gordofóbico provavelmente foi um descuido. Um personagem dizia para a namorada ficar "bem gorda" para outros homens não darem em cima dela.

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    "É uma coisa chata [esse tipo de coisa ir ao ar]. Pode ter sido um descuido, algo que passou. É tanto texto, você tem que escrever tão rápido... Espero que não aconteça comigo. A gente está tomando o maior cuidado para não acontecer isso, justamente porque a gente tem uma história para falar da valorização das boas diferenças."

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    Foi ele quem propôs a diversidade como tema dessa temporada. A Globo gostou. A emissora tem tido uma política de tentar falar com um público mais amplo e aumentar as "cenas sociais" -contabilizou 1.280 delas em 2016, com temas como educação, sustentabilidade e direitos humanos. "A adolescência é um momento bom para falar sobre isso. Teoricamente os preconceitos não estão tão sedimentados", diz Cao.

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    O cineasta sorri relembrando sua própria juventude e descreve que sentia como se tivesse "um machado abrindo sua cabeça". "Não sei porque penso isso. É meio violento, né?", filosofa, antes de contar histórias da sua época.

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    "Quando estava no colégio Equipe (em SP), em plena ditadura militar, fui ver um show com o [Gilberto] Gil. Estava lotado, tinha gente até nos telhados vizinhos tentando ver. Um PM veio tirar as pessoas do telhado e foi uma vaia absurda: 'abaixo à ditadura, abaixo à ditadura'. O Gil, parou, pediu silêncio e falou: 'Calma gente, ele tá só fazendo o trabalho dele, as pessoas estão em perigo, pode acontecer um acidente'."

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    "Foi uma machadada! Eu pensei: 'Nossa, é mesmo, eu não tinha pensado nisso, tava aqui com raiva do cara...' E [abrir a cabeça] é muito importante num momento político, no Brasil e no mundo, em que as pessoas veem tudo em preto e branco. Existem nuances"

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    Diz que pretende atingir os pais também, já que "ser pai de adolescente é uma fase difícil". "Meu filho e minha filha foram ótimos, mas você sente que eles têm a necessidade de se afastar. E você precisa entender isso."

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    Além de diferenças sociais e culturais e dos dramas românticos de sempre, a novela também vai falar de assuntos que surgem nas redes sociais, como depressão entre jovens. Mas não vai tratar diretamente de suicídio, como a série "13 Reasons Why", da Netflix, que levantou o debate sobre o problema.

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    "Suicídio é difícil de tratar, você corre muitos riscos: ou glamouriza, ou estigmatiza. Não é impossível, mas tem que ser feito com um cuidado que talvez na novela eu não tenha tempo. Precisa refletir sobre, pensar, reescrever."

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    Com um roteiro que mistura pobre e ricos, brancos e negros e com uma das atrizes principais fugindo do padrão "magreza", Cao diz que está preparado para reações negativas de um público conservador -como aconteceu com a série "Os Dias Eram Assim", que foi atacada por apoiadores da ditadura.

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    E rejeita, um tantinho ofendido, a afirmação que suas séries infantis são unanimidade. "Faço trabalhos polêmicos também",diz. Além dos programas para crianças, ele dirigiu filmes como "O Ano em Que Meus Pais Saíram de Férias" -que foi a indicação do Brasil para Oscar em 2006, desbancando "Tropa de Elite"- e "Xingu", sobre os índios e os irmãos Villas-Bôas.

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    "A 'Malhação' vai ter umas provocações legais", diz o autor. Divaga por um minuto e depois pondera: "Mas claro, sem brigar. Tem que provocar para conversar, não pra ofender. Para ter uma conversa de alto nível."

    mônica bergamo

    Jornalista, assina coluna com informações sobre diversas áreas, entre elas, política, moda e coluna social. Está na Folha desde abril de 1999. Escreve diariamente.

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