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    Mônica Bergamo

    Problemas nas mãos foram a pior e a melhor coisa da vida, diz João Carlos Martins

    18/06/2017 02h00

    Já passava de duas horas de entrevista quando o maestro João Carlos Martins, 76, interrompeu a conversa em sua cobertura nos Jardins. "Podemos parar dois minutinhos? Vem aqui, quero te mostrar uma coisa. Mas antes desliga o gravador", pede.

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    Ele tira o cachorro Sebastian do colo, levanta do sofá e anda em direção ao enorme piano de cauda que fica num canto da sala. Começa a deslizar os dedos sobre as teclas para executar "Concerto para a Mão Esquerda", do francês Maurice Ravel (1875-1937).

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    "Por quase 15 anos, eu disse a mim mesmo que ia tocar de novo essa música. E finalmente o milagre aconteceu", diz ele, que chegou a perder o movimentos das duas mãos, ao repórter Bruno Fávero.

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    O milagre é resultado de uma cirurgia –a 23ª de sua vida– realizada em janeiro e de pelo menos três horas por dia de treino. "Pratico como se fosse uma criança de 10 anos."

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    João Carlos Gandra da Silva Martins foi considerado um dos maiores intérpretes do alemão Johann Sebastian Bach no século 20, mas foram a sucessão de problemas de saúde e, ao mesmo tempo, sua determinação em continuar na música que o fizeram famoso.

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    Começou a tocar ainda criança e, aos 20 anos, estreou no Carnegie Hall, em Nova York. Aos 25, já considerado um dos melhores pianistas de sua geração, perfurou um nervo do braço direito ao cair jogando futebol.

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    Afastou-se do piano por um ano e fez fisioterapia. Voltou a tocar e gravou as obras completas de Bach, mas desenvolveu lesões por esforço repetitivo. Nessa época, conta, praticava com um balde de gelo ao lado para aplacar a dor nas mãos.

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    Aos 55 anos, em 1995, sofreu um assalto na Bulgária e foi agredido na cabeça com uma barra de ferro, o que causou problemas neurológicos que afetaram seu braço direito. Conseguiu voltar a tocar, mas, três anos depois, passou a sentir dores insuportáveis na mão direita. Seus médicos decidiram cortar um nervo para parar o sofrimento, mas a mão acabou atrofiando definitivamente.

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    "Sempre digo: o que aconteceu com as minhas mãos foi a pior e a melhor coisa da minha vida", afirma o maestro, destacando que a fama lhe permitiu ajudar na popularização da música erudita, atuando como um "embaixador".

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    A obra de Ravel –composta em 1930 para um pianista que perdeu o braço direito na Primeira Guerra– foi gravada por Martins em 2001 como uma forma de seguir a carreira depois de perder os movimentos da mão direita. Poucos anos depois, porém, sofreria de uma nova doença, chamada contratura de Dupuytren, que vitimaria também a mão saudável.

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    Desde então, tocar a música em público ao menos mais uma vez havia se tornado uma obsessão. Agora, diz não querer mais. "Estou tocando só para mim, por isso não deixo gravar." Um dos motivos é que tem medo de voltar a perder os movimentos. Em 2013, ele fez uma dolorosa cirurgia no cérebro -teve que ficar acordado durante o procedimento. Ela lhe devolveu os movimentos por um tempo. Chegou a agendar uma apresentação, mas pouco depois o problema voltou.

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    "Quando eu perdi os movimentos da mão direita, recorri a tudo, até a pai de santo", diz o músico, que é católico. "Um deles fez um trabalho e me garantiu: daqui a um mês, sua mão direita vai estar igual à esquerda. Aí tive problema na mão esquerda", diz, em tom de piada.

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    Neste ano, sua história será contada no filme "João, o Maestro", com direção de Mauro Lima e produção da LC Barreto. A estreia do longa está programada para agosto. Martins é interpretado por três atores: Davi Campolongo, na infância, Rodrigo Pandolfo, dos 18 aos 35 anos, e Alexandre Nero, até os dias de hoje.

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    "Quando vi vídeos do João tocando, tive um ataque de pânico. A velocidade, a virtuose eram inacreditáveis", conta Pandolfo, 32. A produção alugou um piano para que ele estudasse. "Passei várias horas treinando os movimentos no instrumento", relembra Pandolfo.

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    A ideia de fazer um filme baseado em sua vida, segundo Martins, surgiu depois que um repórter do jornal "The New York Times" disse que nenhum roteirista de cinema seria capaz de pensar em uma história como a do maestro. O diretor Clint Eastwood teria se interessado, mas Martins optou por uma produção nacional.

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    O longa trata do drama, mas também desfila histórias menos conhecidas, e divertidas, da vida do maestro –como a de quando ele perdeu a virgindade em Cartagena, na Colômbia.

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    "Foi em um put", hesita Martins. "Ah, é puteiro, né", diz, rindo. "Tinha 18 anos e fui tocar em Cartagena. Estava no táxi e comecei a suar frio quando vi as moças do trottoir [prostitutas na rua]. Então falei, tímido, para o motorista: 'a mi me gustaria tener un diálogo com estas chicas, sabes donde puedo ir?'. De repente ele olha e fala: 'muchacho, usted quiere ir con las putas'. Me deixou em um bordel e acabei ficando hospedado lá por quatro dias", conta, às gargalhadas.

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    "Quando eu tinha 19 anos, eu namorei uma moça que vivia com um detetive. Um dia, ele chegou em casa e eu tive que sair correndo pela avenida Santo Amaro, perto de onde eu morava, com ele atrás dando tiros pra cima", diz, relembrando outra passagem inusitada de sua vida.

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    O escândalo Pau-Brasil, em que uma empresa de Martins foi multada na década de 1990 por arrecadar doações ilegais para uma campanha de Paulo Maluf, ficou de fora. O episódio afastou o artista da vida pública. Hoje ele diz preferir nada comentar sobre política.

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    João Carlos Martins palpitou no roteiro e até no nome do filme. "Pusemos 'maestro' porque é como as pessoas mais me conhecem. Tem gente que reconhece meu rosto, mas não sabe o meu nome. Outro dia uma moça me pediu autógrafo. Virou toda feliz para a amiga do lado e disse: 'Você não vai acreditar! Peguei um autógrafo do Pavarotti'", conta o maestro, dando risadas.

    mônica bergamo

    Jornalista, assina coluna com informações sobre diversas áreas, entre elas, política, moda e coluna social. Está na Folha desde abril de 1999. Escreve diariamente.

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