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    Mônica Bergamo

    'Televisão HD é o horror das atrizes', diz Rosamaria Murtinho

    02/07/2017 02h00

    Rosamaria Murtinho, 81, está no carro a caminho do teatro quando a morte cruza seu caminho. "Ah, mentira?! A Maria Inez faleceu?", diz, ao celular. "Eu tinha falado com a Fernanda Montenegro para tomarmos um chá com ela..."

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    Maria Inez Barros de Almeida era dramaturga, morava no Rio, "foi casada com o Alfredo Souto de Almeida, que me botou na televisão", explica a atriz ao repórter Joelmir Tavares, ofegante e tentando se recuperar do susto. "É, eu tô triste [faz uma pausa]. Envelhecer não é tão ruim não. Agora, acho chato morrer. Sou que nem o Woody Allen: sou contra a morte."

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    Ela está no trajeto entre a zona sul de São Paulo e o Teatro Cetip, em Pinheiros, onde encena até este domingo (2) a peça "Doroteia", de Nelson Rodrigues. Antes de sair, no hotel onde é hóspede, pede ajuda à moça da recepção porque está com dificuldade para se conectar à internet e abrir no tablet os três jornais que lê por dia.

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    Resolve o problema, mas leva a mão à testa: esqueceu no quarto o roteiro da peça —um calhamaço encadernado, com as laterais gastas. "Vou buscar meu salvo-conduto!" As páginas estão cheias de rabiscos e anotações. Só Rosamaria tem quase 400 falas. Ao lado de um verbo que sempre esquecia nos ensaios ("deitamos"), escreveu um alerta nada sutil para si em letras grandes: "BURRA".

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    Na chegada ao teatro, quase deixa o texto no carro do Uber. Mas logo Rosinha, como é chamada pelos colegas, o recupera e sai andando a passos rápidos com ele debaixo do braço. Já no camarim, veste um robe chinês que comprou em Paris. "Aqui tudo que eu quero disfarçar ele vem e põe", ri, apontando o maquiador, que deixa os cabelos dela mais brancos e desgrenhados e, com o pincel, faz rugas e manchas no rosto.

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    "Televisão HD é o horror das atrizes. Eu já fiz plástica e botei botox. Só não ponho no rosto todo porque a testa é importante, faz parte da expressão. O [autor] Cassiano Gabus Mendes dizia que até uma grande franja pode prejudicar a interpretação."

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    Aplica toxina botulínica entre as sobrancelhas porque, conta, franzia demais o cenho e as pessoas perguntavam se ela estava zangada. Com preenchimento, suaviza linhas de expressão. "Aquilo que o século 21 e o meu dinheiro podem proporcionar, eu faço."

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    "Mas não tenho problema em abrir mão da vaidade pelo personagem. Não vou prejudicar um papel, jamais." Em "Doroteia", sua personagem "tem orgulho de ser feia". Desaprova colegas de profissão que se recusam a mudar visual pelo trabalho. "É bobagem! Pode até se apresentar como atriz, mas não é do ramo."

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    O diretor do espetáculo, Jorge Farjalla, diz que "poucas atrizes com a idade e a história da Rosinha teriam coragem e entrega para fazer tudo que ela tem feito". A veterana não sai de cena, anda sem parar e até engatinha no palco. Ela, que coleciona papéis de madame, pediu a Farjalla para "desconstruí-la".

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    A montagem, que depois fará turnê pelo Sul do país, marca os 60 anos de carreira da atriz. São Paulo, segundo ela, deu mais importância à efeméride do que o Rio, onde estreou a peça, em 2016. "Antigamente, para ter repercussão no Brasil inteiro, o tambor era no Rio. Mas o Rio agora está com mania de 'comedinhas'. Acho que em São Paulo dá para fazer coisas mais... Tem mais diversidade."

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    Moradora do bairro carioca de São Conrado, ela divide (literalmente) a casa com o marido, o ator Mauro Mendonça, 86. Juntos desde 1959 (ficaram separados uma vez, entre 1986 e 1994), dormem em quartos diferentes. "Não posso dizer como regra, mas [a divisão] deu resultado, viu? Não precisa jogar na cara do outro que precisa de espaço. Mas, se tem possibilidade e condições para cada um ter o seu..."

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    Os três filhos do casal são artistas. Rodrigo é ator; João Paulo é músico e faz a direção musical da peça "Doroteia"; Maurinho é diretor na Globo, de novelas como "Amor à Vida" e "Verdades Secretas".

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    Na TV, o próximo papel de Rosamaria será na trama das sete "Deus Salve o Rei", com estreia prevista para janeiro. "[Ator] é uma profissão que dá a possibilidade de trabalhar até mais velho. Principalmente no teatro, porque na TV os papéis estão cada vez mais jovens, as mães, as avós."

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    Adora também ver televisão ("novela, série, musical, Faustão"), mas no último ano trocou a ficção pela realidade. "Como gosto de acompanhar política e o que está acontecendo na minha terra, fiquei viciada nos programas de notícias." Afirma que "não só ladrão de galinha tem que ir para a prisão, colarinho branco também. Se errou, que vá para a cadeia. Crime é crime, cometeu tem que pagar".

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    O raciocínio, diz, valeria também para o presidente Michel Temer —denunciado nesta semana por corrupção passiva. Rosamaria acredita, no entanto, que "ele está fazendo coisas que, se não fizer, daqui a quatro anos o Brasil vai parar. Na Previdência, tem muito mais gente que recebe do que gente que paga".

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    "Collor, Itamar, Fernando Henrique, Lula, Dilma: ninguém fez as reformas. E não é que o Temer está fazendo? Ninguém teve coragem de fazer porque eram pessoas que dependiam de votos. E ele, como diz que não vai se candidatar, foi lá e fez."

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    Elogia a equipe econômica do governo e diz ter lamentado a saída de Maria Silvia Bastos da presidência do BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social). "Deve ser muita pressão. Só não é possível pegar o BNDES e fazer [rindo] metrô de Caracas, porto em Cuba. Tem que fazer aqui!" Ambas as obras foram financiadas em governos do PT.

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    Ela —que tem em seu perfil no WhatsApp o desenho de um olho nas cores da bandeira do Brasil, com uma lágrima escorrendo— está lendo o livro do jornalista Vladimir Netto, da TV Globo, sobre a Operação Lava Jato. "Acho que nunca aconteceu no Brasil roubalheira tamanha." Pega seu iPhone e exclama: "Por sorte, com isso [telefone], não tem mais enganação. Todo mundo sabe o que está acontecendo, graças a Deus".

    mônica bergamo

    Jornalista, assina coluna com informações sobre diversas áreas, entre elas, política, moda e coluna social. Está na Folha desde abril de 1999. Escreve diariamente.

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