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    Mônica Bergamo

    'Vou transferir a cracolândia pra lá', diz Silvio Santos a Zé Celso em reunião com Doria sobre o Oficina

    29/10/2017 02h00

    A disputa de 37 anos entre Silvio Santos e o dramaturgo Zé Celso, diretor do Teatro Oficina, ganhou novos capítulos. Na semana passada, o apresentador conseguiu reverter no Condephaat, conselho estadual de patrimônio, uma decisão que o proibia de construir um conjunto de torres residenciais no terreno vizinho ao teatro de Zé Celso, no bairro do Bexiga, em SP.

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    O dramaturgo se opõe à construção. "É como se fosse um 'putsch', um golpe nazista. E muito parecido com o Estado Islâmico, porque visa à destruição de um monumento que é o Teatro Oficina", diz ele ao repórter João Carneiro. A construção, que foi reformada nos anos 1980 pela arquiteta Lina Bo Bardi, é tombada. O teatro iniciou uma campanha para que o governo do Estado vete a decisão do Condephaat.

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    Em agosto, Silvio Santos apresentou seus argumentos numa reunião com Zé Celso e o prefeito João Doria na sede do SBT. O vereador Eduardo Suplicy (PT-SP) também estava presente.

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    A conversa foi registrada em vídeo ao qual a coluna teve acesso.

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    As arquitetas do Oficina apresentam a Silvio o projeto de construção de um parque no terreno, com um teatro ao ar livre. O apresentador afirma que o lote "tem um dono e esse dono tem que fazer aquilo que ele deseja".

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    As imagens mostram que Zé Celso chega atrasado ao encontro. Doria o conduz, com a mão em seu ombro, até a sala onde já estão Silvio e Suplicy. "Estou confiante", afirma o prefeito.

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    "Zé Celsooo! Veio com um poncho, hein? Tá parecendo um dançarino mexicano! Você ainda canta?", pergunta Silvio. "Canto, claro!", responde o dramaturgo. "Eu vim para uma sessão 'solenérrima'. Uma ocasião histórica!"

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    Suplicy pede licença a Silvio para que sua assessora participe da reunião. "Pode entrar quem você quiser! A gente faz um auditório aqui e apresenta os artistas. O primeiro, fantasiado de mexicano", diz o apresentador, apontando para Zé Celso.

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    O dramaturgo corrige: "Tarahumara [etnia indígena]! Eles não se consideram mexicanos, não". "Você devia escrever um livro, Zé Celso! Tem uma série de histórias pra contar", comenta Silvio.

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    O prefeito toma as rédeas. Fala sobre o "bom sentimento" que os reúne: "Verificar se nós podemos encontrar um caminho que concilie todos". Pede foco quando o grupo se perde em brincadeiras sobre a calvície de um dos assessores. Zé Celso bate palmas ritmadas. "Começou o espetáculo!", completa Silvio.

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    O apresentador diz querer encontrar uma solução para que possa fazer algo com o lote, "que não foi de graça". "Embora eu seja um homem rico, não é um dinheiro para jogar fora ou dar auxílio a quem quer que seja." E brinca: "Meu secretário deu uma boa ideia: a gente coloca lá a 'drogalândia', como é que é, a cracolândia, e o drogado que mais se destacar no dia ganha um prêmio".

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    Zé Celso relembra que o Ministério do Planejamento chegou a assumir o compromisso de ceder um terreno para trocar com Silvio Santos, de forma a resolver o imbróglio.

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    "Mas o que você vai fazer com o terreno?", pergunta o dono do SBT a Zé Celso. "A-anhangá-anhangabaú da feliz cidade!", responde o ator, cantando vinheta inspirada no "baú da felicidade". É como ele chama a proposta de um espaço público arborizado com um teatro ao ar livre no local.

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    Silvio questiona quem pagará pela implantação. "Zé Celso, não seja sonhador! Ninguém vai te dar isso aqui de graça. Deixa de ser artista, não sonha! A única coisa sua aqui é o teatro."

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    "Nem o teatro é teu?", surpreende-se Silvio quando Zé Celso explica que, na realidade, o edifício pertence ao Estado de São Paulo. "Mas eu estou lá há 60 anos!", diz o dramaturgo. "Isso não quer dizer nada! Tem favelado aí que tá há mais de 60 anos e, no momento que tem que tirar, tira no dia seguinte", responde o apresentador.

    Maurício Shirakawa/Divulgação
    Silvio Santos e Eduardo Suplicy visitam Zé Celso no Teatro Oficina em 2004
    Silvio Santos e Eduardo Suplicy visitam Zé Celso no Teatro Oficina em 2004

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    "Você é um homem super-rico, supergeneroso!", apela o diretor do Oficina. "Eu tenho culpa de ser rico? Eu dei sorte, e daí? Você não deu ainda, problema teu!", diz Silvio em seu permanente tom de brincadeira.

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    O dramaturgo insiste: "A gente tem que pensar na cidade, cara. Eu tenho 80 anos e ele [Silvio, 86] tem mais do que eu. Daqui a pouco a gente some do mapa. No entanto, a cidade fica. Você sabe disso [voltando-se para Silvio]". O apresentador brinca: "Eu não quero morrer. Não vou morrer!". Todos riem.

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    "A verdade é esta: não tem cabimento você ou quem quer que seja ter qualquer coisa que não pertença a você. Tá errado. Mesmo que você me dê o dobro. Não é lógico, explicável", diz Silvio.

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    "Não é justo alguém pagar por um terreno e não poder ficar com ele, mesmo que seja pra não fazer nada. Isso aqui é uma democracia ou é um regime totalitário?", completa. "Infelizmente não é [uma democracia], teve um golpe de Estado [impeachment de Dilma]", responde Zé Celso.

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    Os representantes da construtora de Silvio tentam apresentar a sua proposta de torres residenciais para o local. Doria pondera que aquele "não é um bom momento".

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    "Eu tô adorando isso aqui. Mas, amores à parte, vamos tentar encontrar um bom caminho", diz Doria, voltando a assumir o comando. Ele diz que o projeto apresentado pelo Oficina depende de aprovação da Câmara Municipal e de recursos que a prefeitura não possui. Zé Celso o interrompe a cada momento. "Relax!", pede Doria. "Você viu que nós não viemos aqui armados. [É] um 'brainstorming'!" (reunião para discutir ideias).

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    Doria lança então sua proposta: uma parte do terreno seria destinada ao Oficina; a outra, a um empreendimento de Silvio Santos que tivesse um componente cultural, como os que existem "na América". O apresentador diz que "qualquer solução é melhor do que deixar como está" e que, se continuar vazio, o lote "vai acabar sendo invadido".

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    Uma arquiteta do Oficina diz que a proposta é "um caminho", mas que a palavra "empreendimento" é "um pouco dura". E Doria: "A gente busca um sinônimo, mas enfim..."

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    O prefeito segue: um empreendimento hoteleiro de Silvio Santos, por exemplo, poderia, com a venda de unidades, viabilizar um "funding" (financiamento), além de uma área de "retail" (varejo) em um pequeno "mall". Zé Celso pergunta: "O que é um 'mall'?" Doria explica: "É um shopping menor". O fato de ter o Oficina em seu "backyard" (quintal), completa, criaria um "asset" (ativo) para os investidores.

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    Doria cita o exemplo de um teatro que fica dentro de um shopping. "[É] horroroso! Teatro de shopping é gaveta, cara!", reage Zé Celso.

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    O prefeito sugere uma reunião para que as duas partes discutam o "draft" (esboço) do que ele sugeriu. E diz ter o "feeling"(intuição) de que sua proposta "fica em pé".

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    A reunião caminha para o fim, com o compromisso de um novo encontro. (Um dia depois, Zé Celso acusaria Silvio de oferecer a ele "uma espécie de propina" de R$ 5 milhões para desistir da disputa. O dono do SBT nunca se manifestou sobre a acusação.)

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    "Gosto muito de ti", diz Zé Celso ao se despedir de Silvio. O apresentador volta a brincar: "Você vai ver, você vai se ferrar. Vou transferir a cracolândia pra lá!".

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    "Eu tiro de letra!", diz o dramaturgo, e pede que Silvio consiga um carro para levá-lo embora. O dono do SBT concorda: "Mas olha, vou te avisar, hein? O motorista que vai te levar é suicida. Ele bate com o carro pra todo mundo morrer!".

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    "Você não tá querendo me matar, né? Isso é questão de série da Netflix!", diz Zé Celso, já em direção à porta de saída.

    mônica bergamo

    Jornalista, assina coluna com informações sobre diversas áreas, entre elas, política, moda e coluna social. Está na Folha desde abril de 1999. Escreve diariamente.

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