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    Nabil Bonduki

    Com a persistência de Zé Celso, ao invés de torres, poderemos ter um território cultural no Bexiga

    21/11/2017 02h00

    Maurício Shirakawa/Divulgação
    RG XMIT: 454901_0.tif Da esq. para a dir., o senador Eduardo Suplicy (PT-SP), o empresário e apresentador de TV Silvio Santos e o diretor José Celso Martinez Corrêa, durante encontro em 18 de abril de 2004, no teatro Oficina, em São Paulo (SP). Eles conversaram sobre projeto do shopping que o Grupo Silvio Santos pretende construir em terreno de sua propriedade em torno do teatro, no bairro do Bexiga. Da reunião também participaram o filho de Eduardo Suplicy, o cantor Supla, e o psicanalista Contardo Calligaris, colunista do jornal Folha de S.Paulo. O encontro foi intermediado por Suplicy, que telefonou ao empresário, dono da rede de TV SBT, no dia 16 de abril, um dia após a publicação, na Folha, de coluna em que Contardo Calligaris propunha em carta aberta a Silvio Santos que ele conversasse com Zé Celso e fizesse uma visita ao teatro. Silvio Santos manifestou a Suplicy o interesse em conhecer o Oficina, e a reunião foi marcada (São Paulo, SP, 18.04.2004. Foto de Maurício Shirakawa/Divulgação)
    O vereador Eduardo Suplicy (PT-SP), o empresário e apresentador de TV Silvio Santos e o diretor Zé Celso em um dos primeiros encontros sobre o projeto

    Arrasta-se há décadas o debate sobre o terreno de 10,8 mil m², no entorno do Teatro Oficina, no Bexiga, de propriedade do Grupo Silvio Santos.

    O assunto está na ordem do dia. O Condephaate reviu o tombamento, retirando a proteção ao entorno do teatro. Em breve, o Iphan e Conpresp deverão se manifestar, o que pode permitir o surgimento de um grande empreendimento imobiliário no local.

    Em contrapartida, cresceu a mobilização em apoio ao Oficina, o mais antigo grupo em atuação no Brasil, que ganhou o apoio de artistas, como Fernanda Montenegro e Caetano Veloso. No domingo (26), está programado um outro grande ato.

    Embora a persistência do diretor do teatro, Zé Celso, tenha sido fundamental para evitar que as torres saíssem do papel, a questão não é pessoal, é da cidade, do país. Ela deve ser abordada sob a ótica do Plano Diretor (PDE) e da política cultural, que dão grande importância à memória e identidade e à relação entre cultura e espaço público.

    O Bexiga é um bairro tradicional, tombado, repleto de manifestações culturais, materiais e imateriais. Além do Oficina, abriga, entre outros, o Teatro Brasileiro de Comédia (TBC), ícone das artes cênicas brasileiras (que precisa ser reaberto), a Vila Itororó e a Vai-Vai e a Festa da Achiropita, que remetem às tradições negra e italiana.

    Mas o bairro foi cortado por uma das piores intervenções da cidade. A implantação da via Leste-Oeste, em frente ao Oficina, gerou a derrubada de centenas de edifícios e criou uma cicatriz, com horrorosos baixos de viadutos e um forte impacto ambiental, para atender o conjunto da cidade.

    Por isso, São Paulo tem uma dívida com o Bexiga. A implantação de um projeto urbano-ambiental-cultural, ancorado nesse terreno e conectado com as demais referencias do bairro, como propõe o Oficina, é uma chance para resgatá-la.

    O PDE, ao criar os Territórios de Interesse da Cultura e da Paisagem, estabeleceu as bases legais para a proposta. Mas sua concretização depende do governo equacionar a aquisição do terreno, transformando-o em uma arena de cultura, a ser gerida de forma participativa.

    Na selva de concreto em que se transformou a região, o terreno surge como um pulmão, livre e verde. Já a construção de torres, além de descaracterizar o bairro, promover gentrificação e gerar um impacto irreversível para o teatro, reforçará um modelo de cidade empobrecedor, baseado na destruição de suas referências e identidades.

    Apenas um visionário, como Zé Celso, com a sensibilidade e irracionalidade de um artista conectado às raízes daquele lugar poderia, com tanta persistência, ter acreditado ser possível resistir ao inevitável e propor uma re-existência. Mas, agora, no momento decisivo, cabe a todos enfrentarem esse desafio.

    nabil bonduki

    Arquiteto e urbanista, é professor da FAU-USP. Em São Paulo, foi vereador, relator do Plano Diretor Estratégico e secretário municipal de Cultura. É autor de 12 livros.
    Escreve às terças-feiras.

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