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    Natuza Nery

    Os Intocáveis da República

    06/05/2014 13h27

    A coisa anda tão feia que tem policial federal juntando as duas mãos espalmadas pedindo aos céus que um grampo não flagre um político com mandato numa conversa cabeluda. Quando isso ocorre, às vezes anos de apuração sigilosa vão parar na gaveta.

    Não raro, perde-se a oportunidade de desmantelar um esquema brabo porque um dado político nacional apareceu na história. Aí, o caso sobe para o Supremo Tribunal Federal. Parte da apuração tem de parar até que os magistrados decidam o que fazer.

    Não é por acaso que a condenação do primeiro deputado federal tenha ocorrido há tão pouco tempo.

    A cronologia é surpreendente.

    O primeiro condenado pela mais alta Corte do país foi Zé Gerardo (PMDB-CE), em 2010. Ele pegou dois anos e dois meses de prisão, mas converteu a pena em pagamento de 50 salários mínimos e prestação de serviços à comunidade.

    Uma semana depois, foi a vez de Cássio Taniguchi (DEM-PR). Mas o crime já estava prescrito e nada aconteceu.

    Tanto num caso como no outro, as irregularidades ocorreram quando esses políticos eram prefeitos.

    No mesmo ano, José Tatico (PTB-GO) também pegou sete anos. Entretanto, os recursos protelatórios acabaram por declarar extinta a pena.

    A cadeia veio apenas para Natan Donadon, no ano passado.

    Ele entrou para a posteridade como o primeiro deputado a ir para o regime fechado. Diante do histórico brasileiro, trata-se de um "desafortunado".
    Foi para a penitenciária da Papuda escondendo algemas, mas ostentando seu mandato na Câmara federal.

    Se houvesse, no Brasil, um sistema online ou de votação por procuração, Donadon conseguiria atuar no Legislativo de dentro do presídio.
    O que o calendário de condenações pelo Supremo Tribunal mostra? Que é preciso repensar o foro privilegiado para crimes comuns cometidos por autoridades públicas com mandato.

    Mais: é preciso encontrar uma forma para que esses "privilegiados" sejam investigados pela polícia sem tantos obstáculos.
    O ex-petista André Vargas (PR) prometeu renunciar ao cargo de deputado para proteger "seus filhos". Depois, resolveu proteger o seu próprio mandato. Motivo: sob a proteção do Supremo, reduziria o risco (se houver) de detenção imediata.

    Vargas caiu no grampo do "Beto", o doleiro Youssef preso na operação Lava-Jato. Ao contrário de outros suspeitos do esquema, muitos deles já detidos, o deputado não pôde ser investigado pela PF.

    As dificuldades de apuração não são só para deputados, claro.
    Ministro do Supremo só pode ser investigado por um crime comum, por exemplo, se o plenário da sua própria corte assim decidir. Ou seja: são seus pares, muitos deles amigos, quem definem seu destino. Se o crime for de responsabilidade, aí a briga vai parar no Senado. E o impeachment só ocorre se dois terços dos senadores presentes votarem "sim".

    O mesmo vale para um procurador de justiça ou para o procurador-geral da República. Nesse caso, são seus próprios comandados quem deliberam sobre o futuro do "chefe".
    Policiais federais há anos defendem, sem sucesso, uma saída: acabar com o foro por prerrogativa de função (foro privilegiado), ao menos para crimes comuns.

    Enquanto houver uma casta de intocáveis, a impunidade seguirá alimentando a corrupção por atacado. O "caixa dois" agradece.

    natuza nery

    Escreveu até setembro de 2016

    Foi editora do Painel.

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