• Colunistas

    Wednesday, 08-May-2024 10:32:42 -03
    Nina Horta

    O jardim

    02/01/2015 02h00

    Foi-se o ano. 2014 foi um ano pouco encantado, mas teve lá suas graças particulares, seus enfeites. Sempre tem a vida que brota, planta rústica do meio das pedras, dos tijolos quebrados.

    Os passarinhos ainda cantam, gritam de alegria, até, comeram uma jabuticabeira inteira, uma amoreira, uma pitangueira, deixaram pires de frutas para quem plantou, mas são felizes demais, que se danem os não passarinhos.

    Sem água no jardim, morreu quase tudo. As flores já eram meio escassas, como dizia meu filho pequeno, nossa casa não tem primavera, só folhas verdes. E de repente, no tronco de uma palmeira baixa, folhuda, nasceu uma orquídea.

    Acho que puxou toda a seiva restante, a última gota da última água e nasceu agressiva, maior do que costumava nascer, bem maior, abrindo-se em pontas dentadas para espetar, se preciso fosse. Flor do Norte, mandacaru da cidade, orquídea voraz.

    Para falar a verdade , no momento é um jardim um pouco angustiado. As hortênsias, uns três pés de hortênsias azuis, tiveram medo de morrer e puxaram os pescoços para cima, e a flor já nasceu velha, já pendendo para semente, diferente, estranha, mas bonita.

    Pouca cor, mas o jasmineiro, justamente pela ausência de água, de gente para cuidar dele, de pouco sol, soltou todo o perfume que tinha. É sentar na sala para um café, sem esperar mais do que o café, que ele o atropela com o quase pecado de cheirar bem demais.

    E tem a galinha. Eram duas garnizés -uma, a mais fortezinha, morreu; e a outra, que perdeu um dedo do pé, ficou sozinha, viúva da outra galinha. Nem percebi que estava doente.

    Só quando seu Antônio começou a frequentar demais aquela bandas da casa, com colher na mão, andando depressinha, como parente em corredor de hospital, é que desconfiei. Não adiantaram as colheres de azeite, de água com sal e açúcar, ela murchou, devia estar na hora dela.

    Ah, como ia falando, a vantagem foi que o cachorro que odiava as duas e fazia com que as trancássemos num galinheiro improvisado, não se lixa a mínima para uma galinha só. Até gosta, e a viva voltou a frequentar a casa, burra, burríssima como sempre.

    E no canteiro de ervas tinha uma que me venderam como novalgina, sempre me intriguei com o nome e nunca usei para dores, mas de boba que ela era e meio feia e inútil foi tomando conta de tudo, de humílima a dona do pedaço foi um passo.

    Vamos ter que achar dentro de nós esse tipo de raiz de novalgina que vai nos fazer viver com o máximo de esforço e inteligência, cavando fundo.

    Foi o que aconteceu também com o pé de neem, a folha do curry.

    Esse merecia um artigo só para ele. Só floresce muito raramente quando o verão é tórrido e acreditem que ele é usado para conter o deserto do Saara, senão as areias tomam tudo pela frente. Ele afunda no escuro da terra, onde nem o capeta chega para tirar aquela flor.

    Esperemos criar raízes e abrir em flor em 2015.

    nina horta

    É escritora e colunista de gastronomia da Folha há 25 anos. É formada em Educação pela USP e dona do Buffet Ginger há 26 anos.
    Escreve às quartas-feiras.

    Fale com a Redação - leitor@grupofolha.com.br

    Problemas no aplicativo? - novasplataformas@grupofolha.com.br

    Publicidade

    Folha de S.Paulo 2024