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    Nina Horta

    Um livro feito de cartas

    DE SÃO PAULO

    23/01/2015 02h00

    Um pequeno clássico, um belo livro de perfeito design, uma antologia de cartas. O compilador, Shaun Usher, jovem blogueiro de enorme sucesso (lettersofnote.com). E a Companhia das Letras traduziu. (Não deu tempo de comprar, cliquei um ebook.) Sou um pouco suspeita para comentar porque adoro cartas. Acho carta melhor do que olho no olho. Estamos em férias, cozinheiros, hora de descansar sem receitas. E é claro que de vez em quando fala-se de comida nas 125 cartas.

    Por exemplo, a rainha Elizabeth da Inglaterra lembra-se de repente que prometeu ao presidente americano Eisenhower, quando ele a visitou em Balmoral, uma receita de panquecas. E atrasada, afobada, com uma letra que de real não tem nada, descreve em detalhes como elas são feitas.

    Em outubro de 1888 um dos perseguidores de Jack, o Estripador, recebeu uma carta e a metade de um rim humano, conservado em vinho. Eram muitos os erros de inglês, mas o autor afirma que já havia fritado o outro pedaço e que estava ótimo.

    O gerente de marketing da sopa Campbell diz a Andy Warhol que soube do gosto dele por sopa de tomate e oferece uma caixa de latinhas de presente. Nas entrelinhas vê-se que o autor adoraria ganhar um dos quadros da Pop Art.

    Três meninas fanzocas de Elvis, ao saber que ele foi recrutado para o Exército, mandam pedir ao presidente que não corte suas costeletas.

    Nem tudo é tão simples, pois um cômico responde a um padre que se ofendera com seu programa na BBC e defende a liberdade de expressão. Um "Je suis Charlie".

    Do fundo do meu coração carteiro, não acho que os e-mails tenham atrapalhado demais. Todas essas sensações que sentíamos, de conquista, encanto, amor, ódio, fofoca, são recuperadas nas nuvens da web.

    Podemos imprimir a carta, vamos ouvir o barulho da impressora, o ping-ping de quando o e-mail chega, o cheiro do papel ofício, o horror, ele usa "kkkkkkkk", ou carinhas de alegria, ela borda flores nas margens, tão fofa!

    Sempre fico imaginando Flaubert, dois volumes de cartas, Virginia Woolf, seis. Emily Dickinson, "um poema é uma carta que escrevo ao mundo que nunca me respondeu". (Mas que ela também não postou.) Se tivessem computador? Ainda vamos achar que tudo foi mais fascinante do que a epistolografia, vencidas tantas distâncias, a resposta imediata... E vão se perder? Não, o Obama guarda todas.

    E não acreditam na cara de pau do Fidel, que com 12 anos escreve para o presidente dos Estados Unidos pedindo uma nota verde de US$ 10. É impagável e, se tivesse sido respondida, talvez se evitasse o futuro quiproquó.

    Estou contando as cartas de assuntos pequenos que cabem nesse espaço, mas tem cartas de perda, de saudade, de conselhos, de convites, rejeições, Leonardo da Vinci oferecendo seus serviços para o Doge de Veneza, uma mastectomia sem anestesia, a descoberta da estrutura do DNA, carta de Gandhi para Hitler...

    E um menininho pedindo a Frank Lloyd Wright que faça uma planta para sua casa de cachorro! Cozinheiros e não cozinheiros, juro que o calor vai ser mais brando com esse livro muito bom e bem resolvido.

    ninahorta@uol.com.br

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    nina horta

    É escritora e colunista de gastronomia da Folha há 25 anos. É formada em Educação pela USP e dona do Buffet Ginger há 26 anos.
    Escreve às quartas-feiras.

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