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    Nina Horta

    Estripulias do olhar

    06/02/2015 02h00

    Estamos sempre falando na dificuldade em transmitir aos outros o nosso modo de olhar. Acho que já contei um tanto de vezes sobre o cozinheiro japonês que foi montar uma mesa de sushis e sashimis na minha casa.

    Eu observava, e a mesa foi se enchendo de barcos e pontes e folhas verdes de crepom, tudo feito com extremo cuidado enquanto minha cara pegava fogo de "vergonha alheia".

    A certa altura, quis ajudá-lo e levei um dos pratos e o ajeitei do melhor modo que pude. Ele veio logo atrás e rapidamente mudou o prato de lugar demonstrando pela expressão a minha gafe. Só aí percebi que "havia método em sua loucura", que tínhamos sido alimentados por culturas diferentes.

    Não havíamos comido as frutas do mesmo pomar, brincado com os mesmos brinquedos, estudado em cartilhas idênticas. Nosso olho era diferente.

    Olho pode ser treinado? Acho que sim. Com o tempo. Se quer ensinar alguém a enfeitar um bolo como você enfeita, o aprendiz tem que estar ao lado, conversando, criticando, começando a entender suas intolerâncias e discriminações.

    Lillian Hellman, a escritora, passava as férias nos Hampton's, reduto de classe alta americana. Ela e o companheiro convidaram um grupo para jantar e ele, depois que colocou o arroz no prato, enfeitou-o com uma bela flor de tomate.

    A Hellman se arrepiou toda, arrancou a flor, agarrou-o pelo braço e sussurrou entredentes: "Sabe que por causa desse tomate poderemos passar a temporada inteira sem um, sem unzinho convite para jantar?".

    O nosso olho é capaz de muita interpretação. Mesmo em fotos. Houve nas redes sociais muita crítica aos novos ministros empossados e à presidente, dirigida às roupas usadas por eles. E críticas a essa crítica, tida como desrespeitosa. O que estaria em pauta era o plano político e não a roupa. Acontece que a vestimenta é nossa "pele social".

    Com a pouca transparência dos políticos a roupa que vestem podem traduzir suas identidades. Há uma imagem de todo o ministério, vejam no You Tube, vale a pena.( "A presidente também dá posse à sua equipe de ministros"). Os homens vestidos do mesmo modo e na mesma posição, com as pernas solidamente abertas mostrando um consenso entre eles de como um homem se sustenta em pé. A presidente, apesar de estar de vestido, tem a mesma postura deles. Numa extremidade está uma das ministras com sapatinho de bailarina e perna cruzada muito coquete e, na outra extremidade, ministra envelopada em verde agrário. A presidente também não gostou do que viu. Entrou em regime.

    A foto é um estudo das personalidades, identidades, costumes. Uma das poucas oportunidades que temos de interpretar, às vezes erroneamente, é fato, aqueles em quem votamos. E também de nos percebermos em relação a eles. Engraçado é que mais uma vez todos os críticos se expressaram em termos de comida. Pamonhas, repolhos, botijões de gás. Voltemos ao assunto primeiro. É preciso estar muito atento à critica do olhar. Tanto em bufês, como em eleições. Tudo isso para aprendermos a ensinar alguém a arrumar uma mesa. Assunto a que devemos voltar. É fascinante.

    ninahorta@uol.com.br

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    nina horta

    É escritora e colunista de gastronomia da Folha há 25 anos. É formada em Educação pela USP e dona do Buffet Ginger há 26 anos.
    Escreve às quartas-feiras.

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