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    Nina Horta

    A velha e a praia

    13/02/2015 02h00

    No calor me dá uma saudade do mar, a menina na praia carregando uma prancha de surfe, andrógina, linda, com gosto de sal.

    Tento me lembrar e só me vem à cabeça a figura daquela velha de vestido, meias, chapéu de palha, sentada na beiradinha onde a onda morre. Está sempre séria, olhos no horizonte.

    Os jovens estourando em carnes frescas, de biquíni e sunga, só faltam pichá-la, ver se está viva ou é uma estátua como a do Drummond. Sentem a tensão no corpo dela quando passam.

    A cada vez que a areia se mexe, a cada onda, ela se equilibra um pouco, finca as garras na areia molhada para não cair.

    Sabe por que é preciso se esconder assim, do sol que queima, do vento que seca, da água salgada e fria que até dói? Sua pele foi se afinando até quase esgarçar, o corpo perdeu o tônus, simplesmente caiu em dobras, o cabelo embranqueceu.

    Ficou feia, só isso, e se cobre. Sabe que ficou feia e também não gosta da ideia. Parece que ninguém vê a vida do mesmo jeito que ela, faça-me o favor, um fenômeno de ficção científica, aquele corpo jovem se deteriorando, rápido, do biquíni ao vestido na praia e, pumba, o fim daquele roteiro insensato.

    Ainda sente os cheiros, não tem cheiro melhor do que o de água do mar, cheiro de liberdade, de infinito, de segredos tantos que não vai ter tempo de entender.

    Ali mesmo no Leme, pequena, ia com o primo bonito à praia, esperavam a onda voltar ao mar e se lançavam como loucos aos tatuís, enfiando a mão nos buracos formados por eles na areia molhada.

    A tia da janela via tudo e começava a fritar o arroz onde iriam os tatuís. Como entrada fazia uma salada russa, de batatas cortadas
    milimetricamente, maionese feita em casa e o recheio de salsichas moídas. E com certeza era muito insegura, pois só faltava morrer de ansiedade por ter na mesa, como convidada, uma sobrinha de sete anos.

    A comida das casas do Rio eram sempre iguais, um trivial com pastel, um cheiro misturado de todas as cozinhas de todos os apartamentos numa hora de almoço.

    Para falar a verdade pura e crua, diante da beleza portuguesa do
    primo menino, as comidas de praia não se gravavam na mente. Será que havia? Nem sei se levávamos dinheiro. Uma nuvem de picolés, cachorro quente, grapete, mas tudo isso era fora da praia, talvez por não existir ainda a multidão. Ah, lembro, tinha raspadinha e castelos úmidos cheios de minaretes.

    Da janela do apartamento a tia se preocupava com o mocetão que era sua irmã mais moça e que não caçava tatuís, mas era caçada pelos vitelloni que a cercavam.

    A tarde deixava o mar amarelo, havia brisa e jogos de bola, passeios pelas calçadas.

    A velha vestida tendo um último contato com o mar continuava lá. Ela ou outra? Qualquer uma era o futuro da menina.

    Só ficou o gosto de tatuí, o picolé vermelho e os aveludados olhos pestanudos do primo, bochechas rosadas, escrevendo com um galhinho o nome da namorada na areia.

    O coração já doía, com uns arremedos de amor. E ainda não se vendia coco verde gelado.

    ninahorta@uol.com.br

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    nina horta

    É escritora e colunista de gastronomia da Folha há 25 anos. É formada em Educação pela USP e dona do Buffet Ginger há 26 anos.
    Escreve às quartas-feiras.

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