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    Nina Horta

    De volta ao lar

    27/02/2015 02h00

    Foi uma das "amigas" do Facebook que me alertou para um documentário chamado "Festins Imaginaires", apresentado na Berlinale. A documentarista é a diretora francesa Anne Georget, que descobriu os cadernos de receitas montado por Minna Paechter no campo de concentração de Terezín.

    Em Terezín, falava-se tanto de comida que havia uma expressão "cozinhar com a boca". Cozinhavam com a boca em filas ao ar livre, no sol e na chuva, esperando pela insossa sopa de nabos. Cozinhavam com a boca enquanto catavam cascas de batata nos lixos e, especialmente, altas horas da noite, de cima de seus beliches.

    Diários do inferno, os cadernos de receita são testemunhos de obsessão pela comida, de saudade da comida, do sonho com a comida, da saudade de casa, do desejo de uma vida boa num mundo melhor, de confiança no futuro.

    Logo após trazer ao mundo o caderno de Minna, a documentarista começou a receber receitas escritas vindas das famílias dos campos de concentração nazistas, japoneses do gulag, sinais espantosos de resistência e humanização. Um dos caderninhos vinha de um campo alemão e era uma coletânea organizada por um grupo que se chamava "Os mosqueteiros dos garfos". Reuniam-se uma vez por semana e andavam pelo campo fingindo que estavam apenas esticando as pernas. O assunto das conversas era só esse: comidas e como eram feitas.

    No caso eram homens que escreviam, homens que nunca haviam se metido na cozinha, escritores, engenheiros, artesãos, médicos.

    E ao escreverem as receitas se pareciam com Escoffier, os termos exatos, o correr da preparação, cuidados a serem tomados. A memória das horas passadas nas cozinhas das mães, das avós, das cozinheiras tomando forma e revivendo.

    Um caderninho resgatado foi escrito em pano, em pequenos retalhos. Os trapos eram provavelmente roubados, vinham das oficinas de costura e conseguiam transmitir receitas com uma letra bem pequena, inacreditável!

    A documentarista ofereceu os cadernos para leitura de muita gente entendida em Holocausto, como Michel Berembaum, que espantou-se com esse triunfo da imaginação, que pulava a escassez, a fome e a miséria, sinais espantosos de resistência e humanização.

    O professor Damásio evoca o caráter estruturante e inofensivo do tema "quando trocamos receitas, pensamos nos ingredientes, como combiná-los e escapamos de memórias mais íntimas que trazem sofrimento".

    Os cadernos alertam para a necessidade de manter ligações com o passado, de celebrar as raízes, preservar tradições, e aquelas simples receitas de tortas e patês de fígado têm ingredientes de importância universal, como o direito à liberdade e redenção, à continuidade e o significado mais profundo da palavra "lar".

    Não é por nada, só uma comparação infeliz, talvez, mas esse excesso de livros de comida, de filmes, de programas de TV, esse assunto que parece não se esgotar nunca não terá como base a mesma necessidade de estrutura, definição, comida na mesa, do cotidiano da casa, das memórias felizes onde havia mesa posta e comida quente?

    nina horta

    É escritora e colunista de gastronomia da Folha há 25 anos. É formada em Educação pela USP e dona do Buffet Ginger há 26 anos.
    Escreve às quartas-feiras.

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