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    Nina Horta

    Comida de hospital

    20/03/2015 02h00

    Um cozinheiro sem eira nem beira se alistou numa guerra por estar sem lugar para morar e dinheiro para comer, e cozinhou para milhares de pessoas. Foi tomando gosto, aprendendo a lidar com multidões. Guerra acabada e lá estava ele, um perito em cozinhar para muita gente. Só que ele era daqueles cozinheiros com paixão, obsessivo, e queria tudo perfeito.

    Foi trabalhar num hospital. Ficou besta. Como? Era aquilo que os pacientes de um hospital comiam? Mas não dava, assim eles morreriam mais depressa do que em casa. Ovo cozido um dia antes?

    Viu que todos os donos e dirigentes de hospital eram muito escrupulosos quanto à segurança da comida. Nunca alguém adoecera por causa de uma mão suja ou de um alimento podre.

    A comida podia ser limpa, mas como era ruim! Ele queria ter todas as estrelas, fazer o seu melhor dentro daquele nicho que escolhera. Viu que o primeiro obstáculo era que a comida era feita fora do hospital, e chegava em porções e congelada. Dá para ser gostosa?

    Ele vivia infeliz. Não conseguia nem explicar aos seus patrões o que sonhava na vida: fazer comida de restaurante nos hospitais. Reuniu-se com cozinheiros e fornecedores e bolaram menus. Havia chegado à conclusão de que os médicos pediam isso e aquilo sem pensar no cara que iria comer. Por exemplo, dois gramas de sal. Ele nunca vira um cozinheiro pesar dois gramas de sal. Imaginou que eles punham uma pitadinha e pronto.

    A comida boa, de bons ingredientes, na realidade não precisava nem de muito sal nem de muito açúcar. Para chegar ao grau de gostosura de um restaurante tinha mesmo é que tirar os excessos. Começou a fazer daqueles menus tagarelas. "Espetos de filé marinados em limão, alecrim, alho, azeite, pimenta-do-reino e um toque de sal marinho com pimentões verdes, cogumelos, tomates e cebolas." "Filés de saint peter com tomatinho-cereja, orégano, azeitonas, abobrinha em julienne assada, uma fatia de mozarela." Só ao escolher o doente já se sentia melhor.

    Foram surgindo outros problemas. Por exemplo, o paciente saía para um exame e nunca mais voltava. Quando chegava, a comida estava fria. Passaram a fazer serviço de quarto para essas exceções. E que boa ideia! Inaugurou o serviço de quarto para todos, como num hotel. Não sei como conseguiu, mas os preços do hospital continuavam os mesmos ou até diminuíam. Com certeza não eram necessários tantos caminhões e esteiras, e gela daqui e esquenta dali.

    Achava os cozinheiros de hospital pouco motivados e pouco produtivos. Inventou um curso puxado com aprendizado de boa comida básica e com o nome de Toques Pretos. O chapéu do cozinheiro era preto e era preciso ter muito orgulho dele e estudar pra caramba. O método vem sendo adotado em muitos hospitais.

    Da última vez que ouvi falar nele, estava com estações de cozinha em cada andar do hospital e o paciente podia escolher dentro de um leque de opções muito bem pensadas. E até dar uma voltinha pela cozinha. O nível de satisfação dos doentes passou de 20% a 90%. Ele e os doentes andam mais alegrinhos. Si non è vero è ben trovato.

    ninahorta@uol.com.br

    nina horta

    É escritora e colunista de gastronomia da Folha há 25 anos. É formada em Educação pela USP e dona do Buffet Ginger há 26 anos.
    Escreve às quartas-feiras.

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