• Colunistas

    Sunday, 19-May-2024 11:29:23 -03
    Nina Horta

    Lé com cré

    03/04/2015 02h00

    Pois é, assisti na quinta passada ao primeiro programa de verdade do Taste Brasil, na GNT. Achei legal. Já senti um alívio por não ser um programa histérico, com mulheres e homens de uma certa idade gritando a toda altura se recebem um elogio e pulando mais alto ainda, numa coreografia digna dos cronópios de Cortazar. Além de tudo, é perigoso, podem cair de costas e não se levantar nunca mais, como as baratas.

    Intui que a competição é mais de equipes, os chefs é que lutarão por elas, ajudando, dando palpite. A apresentação feita em colheres pode não dar uma ideia muito boa do que foi feito e como conseguiu se acomodar lá dentro. Mas, tudo bem. E deve ter edição, dessas coisas que a gente não sabe, e a alguma hora eles provavelmente comem quente. Escolheram três cozinheiros inteligentes e simpáticos e vamos estreitar nossa amizade com eles. Se se comportarem!!!

    O modo de servir acho que não tem mais volta. Nem precisa ser na colher. Há uns 20 e tantos anos ou mais já não se serve uma mesa aos moldes brasileiros e indianos, com a comida toda posta ao mesmo tempo. Nas casas de gente normal, que não é obcecada por comida, ainda somos capazes de ver o estilo comida de quilo, mas nos restaurantes, foi-se o tempo. Acabou mesmo. Pá de cal por cima. E com uma florzinhas.

    Não adianta disfarçar, dizer que o Ferran sumiu como uma bolha e que agora é comida caseira e saudável, sem gracinhas e firulas. Nenhum movimento importante se estabelece sem deixar rastros. Muita, muita experiência dele será deixada de lado por algum motivo, por acaso, pela dificuldade. Outros métodos passarão a ser fundamentais e nem nos lembraremos que algum dia vivemos sem eles. Podem ter certeza de que muito do que já fazemos e mais ainda o que fazem os restaurantes são heranças da comida nouvelle, da tecno-emotiva (?), de outros jeitosos por aí. Principalmente do chef catalão e dos seus bons discípulos que assimilamos sem nem mesmo perceber. Só outro enorme rebuliço é que poderá trocar as novidades por outras. Mas... não são fáceis de acontecer.

    Infelizmente, não tive chance de aprender a cozinhar com os novos utensílios da novíssima cozinha e sinto muita pena. Mas alguma coisa aprendi. Já tinha uma queda para isso, e os novos métodos vieram confirmar que a observação do ingrediente, com mais atenção, sem preconceitos, pode nos levar a misturar coisas, transformar gostos, provar do inusitado.

    Sugiro que numa hora de fome mansa, quando estiverem entretidos com outros afazeres, como ler um livro, olhar o horizonte, peguem um pratão com restos da cozinha. Coisas boas, frescas. Uma batata-doce roxa, uns tomatinhos, um arroz frio, farinha de mandioca, imprescindível, um tamarindo, shoyu, e daí por diante. E vão comendo não lé com lé e cré com cré. Não. Lé com cré. Quando acabarem terão comido feijão com melancia como os baianos e pasteis com açúcar como os mouros.

    O melhor seria fazer as misturas no lombo de um avião (cruz credo), viajando mundo afora. Muitas vezes não dá e pelo menos sabemos bem que quem não tem cão caça com gato.

    nina horta

    É escritora e colunista de gastronomia da Folha há 25 anos. É formada em Educação pela USP e dona do Buffet Ginger há 26 anos.
    Escreve às quartas-feiras.

    Fale com a Redação - leitor@grupofolha.com.br

    Problemas no aplicativo? - novasplataformas@grupofolha.com.br

    Publicidade

    Folha de S.Paulo 2024