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    Nina Horta

    A galinha

    10/04/2015 02h00

    Quem escreve semanalmente num jornal conhece os brancos súbitos, o dia chegando e a página intocada. Não é tão comum mencionar o excesso de assuntos que se atropelam, como gente saindo do elevador em caso de incêndio e engatando na porta estreita e única.

    Pois acontece. Como foi combinado com os leitores, continuo estudando os escravos, o arroz (de preferência do Laos), tenho assistido religiosamente a todos os programas de culinária para comentar aqui, e ponto final. Quanto mais farinhas e organicidades, mais difícil fica.

    Vocês viram nas redes sociais "O caso da horta comunitária da Neide Rigo"? A Neide é uma blogueira sensacional e se meteu a transformar em jardim de temperos uma quina de calçada cheia de entulhos e sujeiras.

    E agora, com domingos e sábados gastos na sua rocinha com outros habitantes do bairro, uma voz estridente quer barrar a suprema simplicidade de um canto ajardinado, feito de solidariedade e cidadania. Quando este artigo estiver sendo lido, espero que a causa tenha sido ganha.

    E quem se interpõe a assuntos tão sérios e não quer que eu escreva sobre eles? É a galinha. Tento me convencer. Os leitores não querem saber dessa galinha viúva, já deu o que tinha que dar. Tudo bem, enveredo por outro assunto, e ela põe a cara no primeiro parágrafo, olhinhos pisquentos. E surge a cada canto.

    Assinei uma revista assim, meio rural, americana, e não é que a revista faliu? Antes de fracassar, mandou um artigo sobre a invasão de galinhas selvagens no Havaí nas últimas décadas. E é claro que estão causando, sem predadores que consigam acabar com elas. Os cientistas andam alegríssimos tentando estudá-las para fortalecer as nossas, ajudá-las a esquecer os hormônios e as gaiolas.

    Mas, infelizmente, não são essas as galinhas que querem entrar na crônica. Não são as selvagens, não são as das receitas, mas é aquela que me acorda de manhãzinha.

    Como a amiga morreu, ela a substitui, num diálogo que me faz encolher mais na cama, pois abril é dos meses mais cruéis, eu sei, e ela entende de todos os lutos, de todas as pequenas alegrias, das óperas bufas, grita rouca, anuncia guerras e abaixa o tom, terna, arrulha, conta do nosso abril modorrento e súbito quer salvar o mundo com uma orquestra de todos os instrumentos, tocados à caipira, rudes, soluçantes, chora, berra, mahleriana, penso na vizinha.

    Galinha é a coisa que mais reflete nossa humanidade tosca, manca, gloriosa e horrenda. Haverá um pouco de loucura nela? Muita? De que entranhas lhe sobem aqueles cantos enferrujados e soberbos?

    Em abril ou não, a galinha entende que os homens não aguentam muita realidade, e ela se impôs a tarefa de contar tudo o que sabe, desde a fofoca mais inócua a verdades que quase impossibilitam o viver.

    Não liga a mínima, nestas manhãs que são dela, a dar importância trêmula e rouca a assuntos sem importância, ao mesmo tempo em que traduz o mundo naquele esforço inaudito do ovo.

    Ôpa, galinha chata! Quero mesmo é te esganar e glupt, comer seu fígado com um bom Chianti.

    ninahorta@uol.com.br

    nina horta

    É escritora e colunista de gastronomia da Folha há 25 anos. É formada em Educação pela USP e dona do Buffet Ginger há 26 anos.
    Escreve às quartas-feiras.

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