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    Nina Horta

    Objetividade e encantamento

    17/06/2015 02h00

    Carlos Alberto Dória é um sociólogo que tem se interessado muito por comida e escrito livros fundamentais para o entendimento dela. Com esse E-Boca Livre, da editora Tapioca, vem nos mostrar os posts de seu blog, reflexões quase que cotidianas sobre os assuntos próprios ao alimento e o uso dele.

    O autor é decididamente um foodie, palavra difícil de traduzir e que aqui no Brasil vai levando uma pecha pejorativa. Não, não, não, foodie é o Dória, foodies são vocês que compraram ou vão comprar o livro dele, foodie sou eu que estou escrevendo essa resenha, foodies são aqueles que de algum modo estão ligados à comida. Aqueles enochatos, pão-chatos, vinagre-chatos, seriam chatos de todo jeito, na mais pura essência da chatice.

    Pois bem, toda quinta-feira, depois que saiam os dois cadernos de comida nos principais jornais de São Paulo todos corriam para o blog do Cadoria a saber o que ele havia achado de nossos escritos. Se implicava com alguma coisas logo dizíamos que havia acordado com ovo atravessado. Os elogiados tinham o dia feito. Era nosso ombudsman, criador de casos, mas sempre com pitadas de bom senso e de polêmica, senão qual a graça?

    No livro novo, lançado na semana passada, começa tratando de um assunto muito querido a ele, que é a crítica. Crítica de jornal, de revista, de blog. A quem serve a crítica? Como interpretá-la? Como segui-la?

    Os protagonistas dessa história que não tem fim que é a comida são o chef, o chefinho e o chefete. Ele gosta mesmo dos que se chamam e são cozinheiros. Aqueles que aprenderam, estudaram, experimentaram. Corta o barato dos imitadores sem noção e exalta os criativos.

    Vê-se logo que o autor quer dirigir todos os esforços para a comida brasileira. "Podemos interrogá-la, mexer nos seus elementos, se quisermos uma culinária viva, dinâmica, moderna, legível." Se fincarmos pé em tradicionalismos, babau, cozinha brasileira. Por causa disso passeia por chefs estrangeiros e brasileiros, expondo seus métodos e filosofias.

    É agora que aparece a palavra "encantamento" que vai influenciar o livro todo. São as fases pelas quais passamos. Ultimamente, por exemplo, quem nos encantou, nos tirou do sério foi Ferran Adrià. Ele era capaz de tirar da nossa boca um "ó" bem redondo. E Atala, e a Rizzo, que não se esquecem da "nouvelle cuisine" nem desprezam técnicas novas. Querem trazer o gosto bom e o sorriso aos que comem da comida deles. E conseguem.

    Nós que não esperávamos da boca do Carlos Alberto Dória a palavra encantamento, o vemos entrar em assunto mais pragmático, o da hospitalidade, de guardanapos, rolhas, garçons, sommeliers, food trucks. Adora o assunto "excesso de açúcar", odeia leite condensado e Nutella, entende de porcos e quer que entendamos também.

    Todos assuntos a fazer pensar, mas que apesar da objetividade entram também no ramo do encantamento, pois o restaurante é o lugar privilegiado da comida boa, lugar da experiência que nos dá prazer.

    Dá uns cutucões para primeiramente voltarmos ao caipirismo, aos modos velhos de fazer as comidas, descobrir ingredientes que esquecemos, quem sabe acharemos aí um caminho?

    No capítulo de cozinha inzoneira trata de assuntos que já expôs em livros e conferências. Vem contestar as "manchas culinárias do Brasil", o respeito às tradições baianas, nordestinas e mineira. Elas teriam vindo à tona para facilitar a divisão neste país tão grande, mas que de pouco pesquisadas acabam tolhendo nossa liberdade. Não queremos só preservar a tradição, mas comer gostoso. Renovar a comida sem deixar que perca a universalidade do comer bem.

    É claro que não se esqueceu que a nossa identidade culinária está no arroz com feijão, e dentro dessas 255 páginas, acho que não se esqueceu de um só assunto que nos incomoda e faz pensar. Através da leitura dele veremos o tamanho de nossas colheres de pau, verdadeiras varas de condão para a arte de encantar e reencantar o mundo através da boa ementa.

    nina horta

    É escritora e colunista de gastronomia da Folha há 25 anos. É formada em Educação pela USP e dona do Buffet Ginger há 26 anos.
    Escreve às quartas-feiras.

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