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    Nina Horta

    A comida de que eu mais gosto

    01/07/2015 02h00

    De que comida eu mais gosto, de que comida eu mais gosto?

    Foi a pergunta que me fez uma revista de bordo que se acabou, muito boa. Fiquei pensando sem conseguir me resolver. Qual a preferida, qual a mais digna de merecer a palavra saudade.

    Profunda, lúgubre, a toda hora me vinha à mente a feijoada, trançando o feijão, a linguiça, o paio, quiçá, o rabo, talvez, a orelhinha, ah, feijão-preto, o óbvio ululante.

    É, a feijoada resolveria. Só pode ser ela. Boa demais, brasileira com origens nobres de cassoulets, ela própria nascida no restaurante G. Lobo, carioca a mais não poder.

    Conheço uma autora de livros de comida que só escreve receitas que gostaria de comer todos os dias, se possível. Nada de excessos, novidades, exotismos. Só o que perdura e se repete. Concordo com ela. Neste caso a feijoada perderia pontos, barroca, exagerada.

    E o palmito? Só nosso. Quase só nosso, fruto da palmeira que anuncia nossa brasilidade, flor, folha, fruto, fresco, branco, macio, desmanchando na boca. Todo dia? Também não.

    O jeito é percorrer as raízes portuguesas, africanas e indígenas. Doces de ovos, o bacalhau ao azeite, as sardinhas fritas. Tudo delicioso, da pontinha, muito bom, pois, pois.

    Dos africanos, as papas, os mingaus, o dendê translúcido e dourado, comida baiana, vatapás, moquecas, carurus, acarajés. Comida de festa, comida de santo. Sai do rol das costumeiras.

    Dos índios, a farinha. Assim, curto e grosso. A mandioca ralada, espremida, trabalhada, transformada. Há para todo gosto.

    Na Amazônia pode quebrar a ponta do dente, desce o país em nuances de beijus, crocantes, etéreas, aéreas, embebem o feijão sem empapar, empapam-se de feijão.

    É de uma modéstia de coisa centrada, que sabe o seu lugar.

    Na Bahia conheço uma, macia como veludo e que escorre dos dedos como pó, massa saborosa que solta o sabor quando apertada contra o céu da boca com a língua. Tem um gosto decidido de mandioca.

    Em Paraty a granulada já se faz mais evidente, é comprada em casas de farinha pelos caboclos e trazida para casa em lombo de burro ou nas costas, mesmo, em sacos de aniagem alvejados, brancos, limpíssimos. Fazem isso uma vez por mês, num ritual, escolhem o produto, provam, comparam com o anterior, sentem pequenas diferenças de sabor, de ponto, de cor. Discutem sobre ela, conversam sobre ela com os amigos, eles que falam tão pouco. É que não há como comer nem feijão nem peixe frito sem ela, a companheira.

    É isso. Companheira. Acompanha sempre. Segura o melado, delimita o caldo grosso da galinha, corrige os exageros líquidos do feijão.

    Gosto dela em farofa e em pirão. Farofa mineira pura, sem ovo, sem bacon. Só a manteiga na frigideira ou o óleo. Passa-se rapidamente na gordura quente sem deixar queimar o fundo, o que seria um desastre. Vai se mexendo, mexendo, até que se tenha amalgamado na perfeição.

    E está pronta, quente, dando o crocante a tudo que é mole. Tem gente que gosta fria, gosto tão quente que faça "tzzz" na língua na hora de experimentar.

    Pirão em caldos de legume, pirão no peixe, farofa com lombo, com pernil e o vinagrete. Eu conheço e você conhece quem come arroz e macarrão com farofa, a companheira. E na pesquisa que fiz no Facebook, ganhou a farofa com salada, pode? Na próxima matéria venho com sites de informação sobre ela, prometo.

    Farofa, farinha, efes fricativos, tem que fechar os lábios senão pula fora, farofa, farinha, frigideira, frisada, frita, fritada, frugal, fúlvida, fundamental, fundadora.

    nina horta

    É escritora e colunista de gastronomia da Folha há 25 anos. É formada em Educação pela USP e dona do Buffet Ginger há 26 anos.
    Escreve às quartas-feiras.

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