• Colunistas

    Thursday, 02-May-2024 06:09:03 -03
    Nina Horta

    Uma cesta de goiabada

    05/08/2015 02h00

    Ainda não apareceu o assunto da próxima série de colunas. Vamos pondo em dia coisas pequenas que se juntam e que um dia poderão nos servir de fonte para reflexão.

    Primeiro momento: dia de jabá

    Todo mundo sabe que sou louca pelo Santa Luzia. Só falo bem do empório desde os cinco anos de idade. Pois como ando uma eremita, fechada no quarto em frente de um computador, passei a estranhar lugares que resolvo ir quando pressionada. E o Santa Luzia foi um desses casos.

    Antigamente andar pelas gôndolas era como pisar nos corredores de casa. O que não aconteceu da última vez que fui lá. Tudo soou como novo para mim, ou melhor dizendo, como velho. Reencontrei minha infância, juventude, minha velhice nas clientes que faziam suas compras, sem desconfiar que atrás delas andava uma sombra relendo os velhos tempos.

    E ainda mais paguei com cheque, alias não sei por que ainda existem cheques se ninguém os aceita mais. A certa altura da coluna comentei que na metade da visita ao Santa Luzia, no setor de goiabadas comecei a me sentir melhor, a adquirir um pouco do vigor que desaparecera nos primeiros embates meus com o passado e o futuro.

    Não critiquei a casa, nem por um minuto, critiquei a velhice que continuava perambulando por seus corredores. Querem saber? Nem isso, critiquei a mim e a nova propensão de me enfiar em casa, longe do mundo e de todos.

    A coluna com a historinha saiu no jornal e no dia seguinte toca a campainha. Quem seria? Uma cesta como as de Natal. E dentro dela um presente do Santa Luzia. Adivinhem o que aquele fabuloso departamento de marketing havia feito. Lido a coluna, pegado a única palavra relacionada à comida, que era "goiabada", e me mandaram bolo de rolo recheado de goiabada, goiabas em calda, goiabada mole, goiabada cascão, biscoitinhos de goiaba, goiabas em calda, goiabada em caixeta, e goiabas-frutas, de vez, enormes. Pode existir delicadeza maior? Havia junto um bilhete carinhoso da Família Lopes e de toda a equipe da Casa Santa Luzia, dizendo que agradeciam a lembrança de tempos dos quais eles mesmo não se lembravam mais.

    E sendo que não falei mal da casa e sim das minhas pernas já não tão ágeis para subir e descer, procurar quirera de galinha, falei, enfim, da impaciência que ataca os velhos nas compras de todo dia.

    Obrigada, meu Santa do coração. Da próxima coluna em que mencionar vocês tomarei cuidado para dar chilique bem em frente da gôndola de bebidas finas. Quem sabe alguém perceberá meu desconforto e me brindará com os vinhos mais antigos, o uísque mais dourado, o gim mais transparente, a vodca mais pura? No dia em que meu sortimento de goiabas acabar, lá estarei, preparada para desmaiar frente à castanha portuguesa já cozida, aos mínimos fouets portugueses e espanhóis, aos potes de ovas ou bem juntinho à deliciosa bottarga.

    Eu avisei que era jabá e agradeço do fundo do coração à generosidade e ao marketing baseado em reconhecimento do cliente antigo ou do cliente que há mais de meio século deposita todas suas fichas no ótimo ingrediente, no ótimo atendimento da Casa.

    Obs: Ainda tive tempo de ver que as goiabadas era de uma cor linda, acondicionadas na perfeição, o bolo fresco como se feito naquela manhã. Nada me deu saudade do passado, só a minha minha juventude perdida e o o creme de leite batido na hora, a batedeira pequena ronronando na mão de um funcionário, enquanto se fazia uma pequena fila de jovens senhoras a espera do produto.

    nina horta

    É escritora e colunista de gastronomia da Folha há 25 anos. É formada em Educação pela USP e dona do Buffet Ginger há 26 anos.
    Escreve às quartas-feiras.

    Fale com a Redação - leitor@grupofolha.com.br

    Problemas no aplicativo? - novasplataformas@grupofolha.com.br

    Publicidade

    Folha de S.Paulo 2024