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    Nina Horta

    Gordas mesmo

    26/08/2015 02h00

    "Ali andavam entre eles três ou quatro moças, bem novinhas e gentis, com cabelos muito pretos e compridos pelas costas; e suas vergonhas, tão altas e tão cerradinhas e tão limpas das cabeleiras que, de as nós muito bem olharmos, não se envergonhavam." Da carta de Pero Vaz Caminha.

    Tenho tido sorte quando arrisco um palpite sobre tendências. Há pouco tempo escrevi que o rabanete iria entrar na moda. Deram risada de mim. Agora está em todos os lugares, de volta. Crise, vida difícil, dá-lhes, rabanete, fácil de plantar, fácil de colher, barato. É isso, no fundo é isso. Na hora de crise, na hora de falta de dinheiro, glamoriza-se o que está barato, à mão. Não tem segredo, é difícil viver tristezas todo dia, então é glamorizar o que está por perto, o que for mais acessível. Sumiram as cozinheiras caseiras? Cozinhar em casa é o chique. Restaurante está caro? O homem vira chef de avental e tudo e ainda posta na internet. Assim vai a vida.

    Então, a próxima tendência é...tan, tan, tan.... Mulheres, vocês não vão acreditar. Moda de mulheres gordas. Não gorduchas, mas gordas mesmo. Não seria politicamente correto dizer que vão entrar na moda como rabanetes, mas há tantas campanhas tentando mostrar beleza na fartura das carnes duras (ou talvez até das moles), que vejo próxima a mulher de coxonas e peitão, barriga caída (indisfarçável), de biquíni na praia. Mais que justo, não é? (Não acho bonita a gordura, que remédio. Levanto uma bandeira há bastante tempo que esteticamente me desagrada. E não há campanha que vá para a frente quando a própria ativista não acredita no que diz.) Resolvi até juntar uns pedaços de artigos através dos tempos para catar incoerências e para sentir de que lado estão os ventos das tendências.

    Acontece que na minha adolescência as mulheres magras quase não podiam ir à praia, ser magro era feio, muito feio. E olha que foi no outro dia, vocês não podem acreditar. Tínhamos dó da menina magra, "não têm por onde se lhes peguem", dizia o avô português.

    A minha mãe usou enchimentos sob o vestido de noiva, pasmem.

    Sabe-se lá como nesse Brasil o grito da magreza se fez ouvido. Em regiões pobres, rico é aquele que tem uma casa, animais e mulher bem alimentada. Assisti na TV um documentário sobre uma vila na Mauritânia onde as mulheres se juntavam frente a uma guru, tiro e queda para fazer engordar. Uma personal trainer de gavage, aquela técnica de engordar gansos. Convence as meninas prestes a casar que os homens gostam de mulher gorda, que está na hora de casar e não é assim magrelas que vão conseguir noivo.

    O documentário continua com uma menina de 14 anos, submetida com carinho, mas muita disciplina, a beber leite das vacas e de camelos. Mas não é nem no copo, é numa bacia. Ela toma, toma, para, diz que não aguenta mais, tem que tomar mais um pouco. Às vezes põe a bacia no chão e bebe como um gatinho.

    Mulher é igual no mundo inteiro. Querem ficar bonitas, querem que os homens gostem delas, querem gostar dos homens. (Desculpem as feministas, crônica de comida não é uma coisa científica, a ser provada ou desaprovada, vale tudo, a intuição também.)

    Pois, voltando ao documentário, uma senhora esclarecida quer mostrar às mulheres da Mauritânia os problemas, as consequências da obesidade. É meio dura, magra, é claro, de óculos muito redondos, roupas sóbrias e discursa em praça aberta contra a gordura.

    Engraçada é a reação dos homens, querem bater nela, avançam sobre ela, chamando-a de traidora, irritam-se sobremaneira porque amam as mulheres gordas. O que vai ser deles?

    Claro que isso serve para muita pensação. Mudamos nós todas, as gordas, para a Mauritânia? Aplaudidas pelos homens, eleitas para comerciais de cerveja, barrigas cheias de leite grosso e amendoim e tâmaras e milho.

    Toda aquela correria por parques, malhação, regimes, tudo toma tempo, enche a cabeça. Fora com isso. Estamos em crise, ser magra é caro, muito caro. Há um livrinho americano, péssimo por sinal, mas com um título esperto. "Come as you are." O sentido pode ser dúbio pois estão falando de orgasmo feminino muitas vezes não atingível, pela necessidade de esconder tudo, de não deixar aparecer o que o outro acha feio. Como é possível um orgasmo comme il faut, escondendo a banha da barriga com uma almofada, suspendendo o peito com sutiãs anatômicos, cheirando a creme contra estrias, morta, morta de fome, um desejo horrível de comer aquele chocolate velho escondido na gaveta! Tem mais é que ir para a cama com o corpo que tem, feliz, calma, mansa, pronta a ser desejada. "Come as you are", esquece o resto. Como as nossas índias, tão despudoradas, tão engraçadas, nuas, tomando banho de rio dez vezes por dia.

    Se não for assim, sinceramente não vale a pena; a histeria, o clamor pelo corpo perfeito, coisa de doido, todos se envolvem numa onda da moda e depois não sabem sair, presos nas redes que eles próprios inventaram como peixes afoitos. Essa sim, é uma tendência que caiu no gosto da mulherada e não há quem consiga extirpá-la.

    O bufê era lugar privilegiado para esse tipo de pesquisa. Comida e gordas por todos os lados. Quem mais engordava e engordava os outros era a Sueli. Antes disso, Sueli era uma menina de cintura de pilão e olhos buliçosos que entrou para trabalhar no bufê, há 20 anos, como ajudante de cozinha.

    Hoje, pesa cento e tantos quilos, mas não perdeu a graça. É a mais sexy das cozinheiras sacudindo as banhas firmes ao som da música dos DJs dos salões de festa enquanto frita bolinhos. Ágil, trabalhadeira, cheia de covinhas, generosa, fértil, suculenta, lustrosa, gostosa.

    Se os que a rodeiam não se incomodassem com sua gordura, acho que seria mais feliz. Precisou fazer uma tomografia. Pois não é que não há hospital do convênio, ou melhor, não há hospitais com uma máquina na qual ela caiba?

    Chegou na minha sala chorando, humilhada. "Sabe, dona Nina, é por causa do meu tamanho, sou muito alta, não entro na máquina." "Alta, Sueli? Um catatau desses? Você é gorda, não alta. Ficou maluca?"

    Pelo jeito, ela raciocina que se fosse alta, a gordura se redistribuiria melhor e seria magra. Começo a dar tratos à bola para melhorar a autoestima dela, mas todos na cozinha estão envolvidos pelo problema do seu peso e focalizam o olhar na gordura da moça, sem perceber seus próprios rabos. Difícil encontrar um lugar mais diversificado do que uma cozinha. Seres de todas as raças e tipos e cores e aspectos e preferências sexuais e deficiências físicas e... temos de tudo um pouco, mas o preconceito maior cai sobre a gordura.

    Ela é feia, vai morrer, não pode ir às festas, ocupa muito lugar, etc e tal.

    O ônibus lotado não para para ela, os uniformes têm que ser sob medida. "Vamos lá, então, Sueli, sei que você gosta do Jô, já fizemos festas para ele. Não é um homem sexy? E aquela dancinha do ventre, abrindo o paletó? O gordo pode ser lindo, menina. E o Marlon Brando, a leveza dele, e o Pavarotti?"

    Ela começa a enxugar as lágrimas. "Pense no pessoal ao seu redor. Ela não discrimina absolutamente nenhuma categoria, ama todos com seu coração de gorda. Funga um pouco, como em dúvida atroz. O pesadelo do gordo é que ele chama a atenção, ocupa mais lugar, pressupõe uma culpa inexistente, uma falha moral. O gordo precisa esconder a fartura dos peitos, a boca grande e molhada, a bunda calipígia. (Um pequeno senão, Sueli não tem bunda que se mencione.) E os gordos sonham com a utopia.

    Sonham com o dia em que o pêndulo da moda redescubra as três graças de Rubens, Renoir, o poder dos reis gordos, dos presidentes fortes, em que os modelos sejam Vênus de Willendorf e de Laussel, dia em que as dietas serão banidas porque, além de não funcionarem, fazem mal, dia em que precisem emagrecer somente um tantinho para se viver com saúde.

    Sueli, perca as esperanças! Ainda estamos combatendo a anorexia. A alegria das gordas só chegará com um sério trabalho político, até desobediência civil, uma revolução, enfim. Neste dia, comer com prazer não será mais pecado, e sim obrigação. Por que os cegos e os coxos se riem dos gordos? Porque os próprios gordos se detestam e se acham culpados. A nossa cultura não contribui para a autoestima deles.

    A própria Sueli sabe que para agradar os gordos precisa fazer comida que eles gostam. Vou até dar uma receitinha dela, de morrer, de morrer, mesmo. E o que de prazer se vislumbra na boca de um gordo quando come alguma coisa que lhe dá prazer! E entende do que é bom.

    Sueli era a rainha do torresmo. Há muitas espécies de torresmo, mas esses são daqueles que têm um pedaço pequeno de pele crocante, mas não dura. É só fazer pressão contra o dente e a gordurinha presa à pele se desmancha na boca.

    E não é modo de dizer, se desmancha como o algodão-doce se desmancha, como o biscoito de polvilho se desmancha.

    Se tivesse que morrer amanhã e me dessem a escolha do método, escolheria morrer por torresmo da Sueli, lágrimas suaves de banha escorrendo pelo canto dos olhos.

    Claro que sei que isso não é nem cozinha, nem gastronomia, nem prazer. É glutonaria. O que fazer, cada um com seus defeitos. De certo modo é confortável, o pecado da gula te afasta imediatamente do desejo da coisa amada, o que não acontece com os outros pecados da vida.

    Conversei com a Sueli. Ela não encomenda mais a gordura da barriga, e sim do lombo, em pedaços iguais, não muito grandes, e põe na panela. Vai mexendo, vai mexendo, vai mexendo e pronto. Que belíssima e sofisticada receita!

    Pois então, pelas fotos de revistas, por reportagens de jornais, por anúncios de roupa, por direitos humanos, os ditadores da moda se tocaram e vão se tocar muito mais que além da comida orgânica e sustentável, há a comida boa que pode ser orgânica e sustentável, isso não vem ao caso. Já os vejo gritando pelas ruas."Mais vale um porco do que uma galinha magrela. Tem vitaminas insuspeitadas, gorduras boas, aquelas que acabam com o colesterol ruim."

    E ainda por cima, já colocou de fora a cabecinha um movimento, não tão subterrâneo assim, que diz em letras garrafais que cada um há que ter sua identidade corporal e vai chegar o dia, trabalhado ou não, de se regozijar com ela.

    nina horta

    É escritora e colunista de gastronomia da Folha há 25 anos. É formada em Educação pela USP e dona do Buffet Ginger há 26 anos.
    Escreve às quartas-feiras.

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