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    Nina Horta

    Onde o estilo está nu

    09/09/2015 02h00

    Fiquei bem triste, perdi todos os cartões-postais que já mandei para a família e os que um dia recebi. Por incrível que pareça, os de oito anos atrás já tinham em si uma marca vintage, eram meu Instagram na timeline da vida: as fotos eram ruins, o papel grosseiro, só o tempo que levavam a chegar era bem diferente do tempo das fotos postadas na internet.

    Ler cartas antigas é como fazer uma arqueologia do passado, descobrir fósseis, modos de ser e de estar, ossos de bichos, joias trabalhadas em ouro, restinhos da comida de domingo. Nem conseguimos imaginar o fosso que separa a carta do e-mail.

    No começo do século 2 temos uma carta de Plínio a um amigo que, convidado, não fora ao jantar preparado para ele. Olhem só como nos parece moderno.

    "Ah, você é um cara engraçado! Combina um jantar e não aparece. Mas a justiça será feita; você há de me reembolsar até o último tostão de despesa que tive por sua causa; e não foi pouco, acredite. Preparei, como bem sabe, um alface para cada um, três escargots, dois ovos, e um bolo de cevada, com um pouco de vinho doce gelado na neve. Vou cobrar a neve, também, afinal uma raridade que dura pouco. Azeitonas, beterrabas, abóboras e uma outra centena de gostosuras (...) mais as ostras, as barrigadas de porco, os ouriços."

    Virginia Woolf é minha preferida no setor correspondência. Tinha um estilo de escrever próprio para cada um de seus amigos e era de uma naturalidade e prolixidade assustadoras. Nos tempos de internet acho que ela não teria feito outra coisa do que entrar e escrever em redes sociais e mandar e-mails. Iria adorar.

    Olhem esse pedaço de uma carta escrita para sua amiga Vita no auge da Segunda Guerra, quando a comida era totalmente racionada e difícil de ser conseguida. "Só o que posso dizer é que quando descobrimos a manteiga na caixa de correio da casa –foi Louie que descobriu– ora, isso é meio quilo de manteiga, disse eu. E a seguir, peguei um pedaço com as mãos e comi, assim, pura. Aí, com o coração cheio de generosidade, dei toda a ração da semana que era do tamanho da unha do meu polegar para Louie, ganhando sua gratidão eterna; me sentei e comi pão com manteiga. Teria sido um sacrilégio juntar geleia. Vocês provavelmente se esqueceram do gosto que a manteiga tem. Vou contar, é alguma coisa entre o orvalho e o mel. Meu Deus, Vita cumprimente as vacas por mim e a menina que tira o leite."

    E um artigo meu também sobre manteiga acorda um leitor. Seu nome, Roberto Godinho. Por e-mail.

    "Sua coluna faz coisas que você nem de longe imagina. A de hoje mexeu comigo, e eu deixei que mexesse até passar do ponto, e foi muito bom, virei manteiga. Nos meus tempos de menino, minha mãe costumava separar a nata que se formava no caldeirão de leite que ficava na cozinha, à disposição de qualquer um que o quisesse, ali no sítio. Depois de juntar uma certa quantidade, minha mãe batia e fazia manteiga. Divina, aquela manteiga nunca saiu das minhas boas lembranças. Saboreada logo depois do preparo era inigualável (...) Agora eu pertenço ao grupo dos sem vaca. A sua coluna chegou como o viajante desejado que não se espera. E chegou trazendo o presente simples que eu precisava. Bati o creme de leite e veio a manteiga, igualzinha à da minha infância, na aparência e no gosto. Aquela manteiga lubrificou as engrenagens da minha cabeça. (...) E como se não bastasse, com o soro eu preparei um molho divino onde minha rabada pulou de cabeça. E antes da rabada, pãozinho francês com manteiga. Foi bom demais."

    Geralmente me divirto mais com as cartas do que com a própria obra do escritor.

    Emily Dickinson era perfeita, apesar de deixar certas ambiguidades que não conseguimos decifrar. Há um volume de cartas dela para a cunhada que até hoje traz dúvidas se eram cartas de amor ou de amizade. Acho que de amizade. Só hoje se suspeita tanto de lesbianismo.

    Mas conheço melhor a poeta e sua vida através de suas cartas, que podem ser lidas inocentemente ou com uma carga poderosa de erotismo. Ela também tinha receitas, principalmente de um pão que fazia diariamente para o pai.

    O que me atrai nas cartas, em todas as cartas, e nos e-mails também, é que nos bons, nos saídos quentes do coração, é que o estilo está nu, não foi editado e revisto para ser literário ou bem escrito e dirigido ao leitor de um livro.

    Um dos nossos principais livros de cozinha, o Rosamaria, escrito por alguém da família Leonardos, do Rio de Janeiro (um dia ainda espero que alguém faça essa pesquisa que deixei de fazer, certamente enquanto a autora estava viva), é escrito em formato de cartas da cozinheira para sua filha. Existe ainda a possibilidade de se voltar às cartas, vez ou outra? Acho que não. O último reduto eram as cartas de pêsames, que sorrateiramente invadiram os e-mails, pois chegam depressa, na hora da necessidade, quando quem os recebe ainda chora.

    James Joyce tem as cartas eróticas para sua mulher, Nora. E as dela para ele. Aí, não tenho certeza se a internet sabe guardar em baús coisas que escrevemos num minuto de doideira. Joyce e Nora, quando separados se escreviam essas cartas tão íntimas para suscitar sentimentos do amor entre eles, evitando traições. Adoraria ler alguma coisa inteligível à primeira vista vinda de Joyce. Por incrível que pareça não encontrei essas cartas na Amazon, aliás, encontrei, mas em chinês. E depois algumas, de somenos importância, num blog. (Sei que existem traduzidas, inclusive para o português, por Mário Pedrosa). Sexo é sempre igual, vira o mundo e nada muda. E Joyce pede a Nora uma comida especial para quando chegar em casa. "Umas sobremesinhas e algum molho de baunilha sem creme. Adoraria rosbife, sopa de arroz, capuzzi garbi, purê de batatas, sobremesa e café preto. Não, não, prefiro stracotto de macarrão, uma salada mista, ameixas pretas cozidas, torroni, chá e presnitz. Ah. Não, quero mesmo enguias ensopadas ou polenta" Vejam, mesmo nesse tipo de cartas o cotidiano entra violentamente, quase a mesma coisa, sexo e comida.

    Madame de Sevigné é a que se parece mais, assim por cima, com o Facebook de hoje. Bernard Rafalli que faz uma antologia de suas cartas, comenta na introdução o seu status como escritora. Era só uma mulher superficial ou alguém que escreveu a pequena história dos costumes de uma época?

    "Ela fala, conta, descreve, pinça, acaricia, pede, desconversa, reprova, desculpa, (...) com lágrimas, exclamações, canções, ataques de riso, um fio vivo, irresistível, fácil de ser entendido, ao contrário das vias às vezes difíceis e complicadas das histórias oficiais." O maior elogio possível é que Proust gostava dela. Escreve para a filha ausente, quer dar uma ordem à desordem própria da vida. Descreve os assuntos que comenta como caldos ferventes cozinhando na sua cabeça todo o tempo. Vive mais o próprio descrever a vida do que a vida propriamente dita.

    Madame de Sevigné era um Facebook, cheio de sabedoria, com uma imaginação fantástica, que se mistura à ironia, à loucura, emoticons de todos os feitios, a fim de seduzir. Quer atingir a transparência absoluta da comunicação (no Facebook com as fotos) recusando os efeitos e brilhos da escritura. Queria a pura espontaneidade, qualquer coisa que lhe viesse à telha.

    Bem, Madame de Sevigné entrou nessa conversa, não por causa do Facebook, mas por causa da sua descrição vívida da morte de Vatel. Não fosse por ela, nem saberíamos da história, pois já durante a festa foi substituído e levado embora para uma vila mais próxima, enterrado sem nome.

    Deixo umas sugestões de leitura para quem gosta de cartas, que tanto podem ser lidas como e-books ou como os de papel que estamos tendo problemas difíceis de deixar para trás:

    Lettres/Madame de Sevigné/ Flammarion

    Letters of Note- Shaun Usher (já existe traduzido)

    To the Letter: A celebration of the lost art of letter writing /Simon Garfield

    nina horta

    É escritora e colunista de gastronomia da Folha há 25 anos. É formada em Educação pela USP e dona do Buffet Ginger há 26 anos.
    Escreve às quartas-feiras.

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