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    Nina Horta

    Ícone meio estressado

    23/09/2015 02h00

    Vamos cumprir o prometido e escrever outra carta. É uma insubordinação, não é? Se não podemos colocá-las no correio com envelope e selo e tudo, podemos enganar o virtual e escrever como se fossem à moda antiga, sem "kkkk" nem nada. Eu estava lendo os fins de vida da Elizabeth David e da MkFisher, cheios de cartas. Inglesa e americana. Só não falo de uma cozinheira brasileira, pois que eu saiba nenhuma escreveu uma autobiografia.

    E vejo semelhanças comigo. As duas mais escreviam do que cozinhavam, por isso eram famosas e foram sendo mitificadas. Bom, a semelhança ia até aí pois foram grandes escritoras de verdade. Não estou fishing for compliments, quero falar a verdade. Todos que escrevem viram lenda. Escrever tinha ou tem um poder enorme de te fazer diferente, uma em cada cabeça que lê. Imediatamente depois que entrei para o Facebook recebi um pedido de amizade que se justificava assim: "Quero ser seu amigo pois a senhora é um ícone". "Ícone?", perguntei de volta. "Como assim?" E ele rápido, "Ah, não é? Pensei que era". E nunca mais escutei falar no amigo.

    Lá no buffet, uma vez atendemos o telefone e uma cliente desconhecida perguntou se poderíamos ficar mais um pouco no escritório, pois era a única hora que tinha para conversar conosco. Esperamos um pouco a contragosto, mas deveria ser uma festança pra tanta urgência. E sabe o que queria a madame? Me cheirar. Entendi, queria aquele cheirinho de avó com lavanda e talco, fazendo biscoitos para os netos. Cheirou e saiu correndo, missão cumprida. Ora, ora.

    Mas é mais ou menos o que acontece. Os jovens te imaginam numa redoma sábia, e querem dar uma espiadinha antes que a possibilidade se acabe. As duas escritoras das quais falei lá em cima, como eu, adoravam as homenagens, só tinham problema com a comida, pois o admirador ou admiradora chegavam e em alguma hora tinham que comer. M.K.Fisher se salvava com uma salada gostosa e uma quiche, se não me engano, e La David, bebendo. Adorava vinhos. A Fisher se lembrava sempre da primeira visita de Alice Waters, que chegou de cesta orgânica e desafiou. "Vamos ver se fica mais gostoso do que de costume." A ícone já estava com uma artrose dolorida, mas escreveu para uma irmã que topara o desafio, cozinhara e tinha dado tudo certo.

    Tenho recebido meus meninos e meninas, às vezes na base do delivery do Ritz ou do Spot, mas me sinto meio mal, porque sei que eles gostariam mais de uma comida feita por mim, nem que fosse um ovo frito, como me disse o Pablo Jorge. Mal sabia ele que dona de buffet pode passar décadas sem cozinhar, só comendo e experimentando, como é meu caso. E agora que vendi o buffet tudo fica mais difícil, sair para comprar, perdem-se os melhores fornecedores (porque você não vai pedir três siris para alguém quem te vendia toneladas por ano).

    Avisei o Pablo que era na base do delivery, mas poderia vir trazer as coisas que comprara para mim numa enorme viagem que fez pelos países nórdicos.

    E foi o que ele fez. E se precisava cozinhar alguma coisa ele próprio cozinhava. Até que um dia me deu aflição, afinal aquilo parecia uma exploração de velha maluca, comendo à custa alheia.

    Já o Carlos Alberto Dória viera almoçar aqui trazendo ostras fresquíssimas da Bella do Amadeus, que não quis cobrar, e butargas de um bom peixeiro.

    E o novo visitante me entupindo de caviar e Champanhe. E eu nada de ovo frito, todo mundo sabe que o ovo frito é uma prova e tanto, e eu sempre gostei dele com a clara bem esturricada, de preferência frito no azeite e com pimenta-do-reino no fim. Não ia agradar.

    E na semana passada tive um arroubo de deixar a preguiça de lado, passar por cima das dificuldades e começar a cozinhar outra vez. Uma das amigas do Facebook, Emilia, postou um pato imenso e me deu o endereço. Liguei no dia anterior, dava tempo, perdi a cabeça, comprei peito de pato, coxa e sobrecoxa, gordura de pato, foie gras, não era possível aquela benesse cair na minha mão e no mesmo dia convidei Pablo fã e a mulher dele para jantar. Só não chamei o Dória porque estava dando seu belíssimo curso de comida.

    E daí peguei o endereço do peixeiro que andava vendendo butargas, e conversamos e ele também era meu leitor e começamos com manjubas, caminhamos para o polvo e para as lulas, e o peito do pato, e camarões.

    Eu que passara o ano sem essas riquezas, de repente tinha nas mãos um mês de ingredientes extraordinariamente bons, pedindo aos gritos para serem feitos em primeiro lugar.

    De manhã voei para o Santa Luzia, e vocês sabem como é, fui planejando o menu.

    Estava muito calor e eu faria um dukah, que é um pozinho de nozes, avelãs, cominho, etc etc. Pozinho pronto, com um bom azeite do lado e um pão (folha) ficaríamos beliscando e tomando água de coco fresca, e um lassi de coalhada com cardamomo, que se faz num segundo. O mise en place seria posto em mesa grande e como o leitor fã sabia fazer um peito de pato, imaginei que naquele calor ele poderia fritar o peito e cortar em fatias finíssimas para um carpaccio de pato com pedacinhos de foie e pinoles por cima. Nada mais que 15 minutos. E eu daria partida ao jantar com uns camarões passados no alho, bem provençais. Eram camarões pistola, frescos, durinhos, e que não exigiam mais que 10 minutos entre descascar e fazer. Muito exxperta que sou.

    Mas, sabem como é, de manhã a conversa com cada fornecedor que veio fazer a entrega, interessadíssima, das onze em diante escolhendo os acompanhamentos no Santa Luzia, chegar em casa tirar tudo dos pacotinhos, como se aquele fartura morasse lá na cozinha, sempre. Foi o mais cansativo e trabalhoso, os cogumelos resplandecentes, cada um mais bonito do que o outro, e as laranjinhas da China das quais tirei "o de dentro" e pus para cozinhar a laranjinha oca, a casca, que de algum modo poderiam servir para o pato do meu jovem amigo.

    E eles chegaram e nos sentamos. Percebi na hora que seria difícil levantar dali, sentada forever era o meu plano. Ele trouxera Champanhe, tenho um jogo de cristal antigo com as taças daquelas abertas, como sempre gostei, mas enormes, grossas, altas. Pensei em gritar que daria meu trono, cheia de sede, por um copão gelado daquilo.

    A mulher do Pablo se sentou à minha frente e também me pareceu querer vender o reino por uma bebida. O pobre do admirador entrou numa azáfama servindo a mulher e a mim de muito Champanhe e caviar, pasmem, caviar enrolado no pão folha do Santa Luzia. Acho que percebeu que a certa altura nós duas não queríamos nem conversar sobre comida, embevecidas com assuntos mais fúteis, e paradas estratégicas para tomar mais Champanhe.

    Para encurtar essa carta, que já vai longe, a certa hora escutei a voz do Pablo, como é que é, não vai ter jantar e a comida?

    Ícone meio estressado fui para a cozinha e maquinal e brutalmente limpei os camarões, piquei a salsinha, minto, ele picou, joguei a manteiga e o azeite na frigideira e onde estava o alho para a Provence, o alho que dá gosto e nome ao prato? Esquecera de comprar o alho, o Pablo arranjou uns dois dentinhos na cozinha desconhecida dele, pus bastante limão, e o camarão ao alho foi para a mesa meio chocho. Tinha arroz? Não, não tinha, e a preguiça de fazer? Forrei o prato com uma camadinha bem fina de farinha vinda de alguma Amazônia profunda, de outro admirador, pus os camarões por cima, com o molho, me senti o próprio Atala, só faltava a formiga para abrasileirar de vez. E Champanhe e mais Champanhe para a ícone.

    O segundo prato era o peito de pato, o Pablo foi e fez. O fogão tem uma boca de gás muito forte, (a bendita Viking veio aqui em casa e consertou o forno, grátis, nem acreditei, viva a Viking, tenho fogão novo até morrer) e a frigideira havia que ser outra, de ferro, pois as chamas invadiam a panela e incendiavam a gordura do pato que subia até o teto da cozinha, aos gritos do Pablo que não queria fazer bagunça na casa da ícone. Queimou-se até como um bombeiro corajoso, mas está de mi mi mi, na internet até hoje. Ah, fez uns cogumelos salteados na hora para acompanharem o peito do pato.

    Ia me esquecendo que meio dia em ponto, quando ia saindo para o Santa Luzia, chegou aqui em casa um menino pâtissier que adoro, o Renato. E trouxe para nós a coleção de doces própria que inventou e trabalhou no Opera para darmos palpite e se chegou a calhar! Mais na hora, impossível.

    Bom, foi uma bela refeição, um pouco toldada pela bebida. Já aprendi. Ícone geralmente é velho, não pode fazer tudo ao mesmo tempo, tem que arrumar um dia antes e no dia tem que fazer as honras da casa, sem beber. Prometo que de agora em diante recebo todos os fãs queridos com muita sobriedade e graça, tendo nos bastidores esses grandes fornecedores. Esqueci de dizer que deixei queimar minha panela de doce de laranja e a frigideira do Pablo ficou negra. Estou limpando e pondo de molho até hoje, misturei tudo que me ensinaram, vinagre, bicarbonato, sal, mas tá duro de soltar aquele pretão no fundo.

    É carta, mas carta também carrega nomes de fornecedores e receitas. Tenho cartas antigas, quase bandeirantes, em que as pessoas mandam mantimentos e especialidades uma para a outra com as devidas explicações, sobre a linguiça, como fora feita, o jeito de se rechear um peru. E quem está do lado de lá quer fazer também. Por isso vai tudo explicadinho na ponta da pena.

    SERVIÇO

    Renato Mentone Blinder chegou em primeiro lugar com sua coleção de doces, não muito doces, estilo europeu, diferentes de todos que temos aqui
    O quê Parfait de limão siciliano com morango, musse de iogurte grego com manga e especiarias, gianduia, èclairs de chocolate ou caramelo, macaron de framboesa com chocolate
    Onde Opera Ganache - Alta Confeitaria (r. Augusta 2.542, lojas 5 e 6, Jardins)

    Quem já nos dera ostras de presente? A Bella, dona do restaurante Amadeus
    O quê Ostras enormes e frescas
    Onde Restaurante Amadeus (r. Haddock Lobo, 807, Jardins)

    Queríamos patos macios e grandes? Foies, gordura de pato, coxas?
    O quê Peito, gordura, coxas e foie de pato
    Onde Agrivert Indústria e Comércio; tel. (19) 3849-7281

    Gustavo Rodrigues vende o que vem da água
    O quê Peixes, lulas, polvos, butarga, manjubas
    Onde gustavo@peixariatatuapé.com.br; tel. (11) 98549-9821

    nina horta

    É escritora e colunista de gastronomia da Folha há 25 anos. É formada em Educação pela USP e dona do Buffet Ginger há 26 anos.
    Escreve às quartas-feiras.

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