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    Nina Horta

    E de sobremesa, o que pode ser?

    21/10/2015 03h00

    O rapaz amontoou os últimos papéis na pasta, aflito, atrasado. Separado da mulher havia um ano, sabia que a empregada o agarraria no caminho da garagem e nem tentou desviar. Quem sabe ela só mandaria para ele um olhar gourmetizador, um olhar de quem queria fazer novidades e não havia ingredientes finos, daqueles que ficam bons sem cozinhar, só porque já nasceram gostosos, engordados por capim doce e bolotas macias.

    Mas não houve jeito, ela se localizara num canto estratégico e ou ele pisava nela ou não alcançaria a garagem.

    "Pois não, Maria, é comida só para mim, vamos ver o que temos."

    Ela abriu a geladeira, deu uma olhada para dentro e fechou com o pé.

    "Tem um pires de sardinha, daquelas que o senhor não quis comer e saiu para jantar fora."

    "Mas eu gosto de sardinha, você pode deixar como está, põe do lado uma cebola-roxa cortada fininha, deixa a cebola de molho no vinho umas horas, na hora escorre e põe do lado. E cozinha um ovo, amassa bem a gema com azeite, fica um patezinho, e a clara pica bem picada. É uma delícia sardinha com ovo e cebola. Tem pão?"

    "Pão 'num' tem, não, só umas fatias daquele preto com sementinha dentro."

    "Ótimo, na hora ponho na torradeira e arrumo o peixe por cima."

    A empregada o olhou de soslaio. Não era que o homem estava aprendendo? Quando a patroa saiu, não sabia a diferença de ovo frito ou cozido, e agora já estava se desenvolvendo.

    Ela mesmo se lembrou de uns cogumelos que estavam lá no fundo e propôs.

    "E se eu fizer um ensopadinho desses com manteiga, combina?"

    "Combina, sim, prefiro que faça na hora, mas com azeite, para acompanhar a sardinha."

    "Mas, não é pouco, seu João?"

    "Acho que não, Maria, como entrada está até meio forte, mas podemos fazer alguma coisa mais."

    "É que não tem ingrediente, seu João."

    "Bem, se a gente procurar bem, acaba achando. O que é aquele pacotinho ali?"

    "Ah, é o peito do pato que sobrou da festa de anteontem, que o senhor fez para a dona Maristella. Ela nem gostou, né? Vi que deixou tudo no prato."

    Ele ficou vermelho a contragosto.

    "Mas você aprendeu a fazer?"

    "Tinha que aprender? Era só ver e nunca mais esquecer. Que nem um bife vermelho, sem tirar nem pôr. Faz muita fumaça na cozinha por causa da gordura, mas é facinho."

    "Pois é, Maria, mas como hoje está quente, você pode fazer o bife e deixar esfriar. Na hora corto em fatias finas, quase como um carpaccio, e servimos com aquele restinho de pistache e umas folhas de agrião."

    A empregada pôs-se num pé só, com o outro encostado na pia.

    Que mania têm esses homens de inventar de cozinhar bicho bonito que mulher não gosta, pensou baixinho. No tempo da patroa a louça era bonita, tinha flores, mas o forte era carne picadinha de mil jeitos e bife com mil purês, também. Homem é que gostava de comer coisa que mulher não come só para se mostrar de entendido.

    O rapaz ia se levantando com um suspiro de alívio quando a moça quase o segurou pela borda do paletó.

    "E sobremesa, o que pode ser? Esta vai ser difícil de arranjar, tá parecendo casa de pobre, só tem banana."

    "Banana? Mas tem tanta coisa que gosto com banana, Maria, e você sabe disso. Tem farinha de trigo para fazer aquela massa de pastel que você faz tão bem?"

    Ela se derreteu um pouco com o elogio.

    "Ah, o senhor até que gosta, né, mas é simplezinha, faço num minuto."

    "Então, por que não, um pastelzinho de banana com canela e açúcar?"

    A menina sentiu que perdera a partida, o homem estava afiado, mesmo. Ele se levantou, perguntou se ela precisava de mais alguma coisa e saiu com o coração quase inchado de alegria de ter sido capaz de imaginar uma refeição com quase zero de ingredientes.

    Entrou no carro e veio-lhe à cabeça a mãe do amigo que tomara uma dose grande de barbitúricos e passara um grande susto na família. Os filhos na cabeceira, esperando que alguma coisa de um profundo passado escuro viesse à baila e ela dizendo: Não, meus filhos, não tenho nada, foi bobagem, vocês sabem como sou religiosa, jamais atentaria contra a vida, mas depois de 50 anos de casada, quando escutei a moça perguntando o que era para fazer de janta, pensei em mim casada com 20 anos e até hoje, 50 anos depois escuto diariamente essa mesma pergunta, foi me dando uma sensação de repetido, de déjà vu, de angústia, de insatisfação, e tomei um comprimido, esqueci que tinha tomado, peguei outro.

    O rapaz, como se conversando sozinho, acenou com a cabeça, concordando com a mãe do amigo que ele nem mesmo conhecia.

    nina horta

    É escritora e colunista de gastronomia da Folha há 25 anos. É formada em Educação pela USP e dona do Buffet Ginger há 26 anos.
    Escreve às quartas-feiras.

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