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    Nina Horta

    Aqui em casa, não

    04/11/2015 02h00

    A viagem não poderia ter sido melhor. Aquelas chegadas a hotéis bons, com cama muito esticada, cheirosa, oito travesseiros, o café da manhã feito por outro alguém que não você, o pão diferente, a manteiga soberba, a ida ao mercado e o quase susto das novidades. Na rua vendem-se cerejas doces e baratas, os museus andam um pouco cheios, mas sem comentários, passeios a pé, parques e o sol se pondo, o sono fatigado, os sabonetes fragrantes, a água que corre abundante do enorme chuveiro. O descanso, a vontade de descobrir restaurantes em ruelas, uma ou outra decepção, mas viajar é bom.

    Acontece que de repente vai dando assim um banzo, uma inexplicável saudade, pequena, em embrião, uma falta somente.

    E chega o dia de voltar e tirar os óculos de enxergar longe, e guardar na bolsa, pois você não quer ver mais nada. Só o prazer incrível daquele portão quebrado, o jardim que secou com a falta de água, a cara confusa do cachorro que pensava que nunca mais. O lavabo está lá, pequeno, com a foto de Veneza já meio apagada, a pia colonial descascada, o cabide de guarda-chuvas, uma bacia no chão cheia de conchas. O banheiro, talvez seja do banheiro que sentimos mais saudades. Ora, aquela é sua casa.

    É abrir a geladeira, pois não é que aquele mesmo curry tailandês ficou te esperando? Alguém comprou leite de pacote, há um saco de ervilhas, algumas laranjas e limões, uma velha vodca pela metade no freezer.

    O armarinho de madeira da cozinha tem cara de velho e é velho, mas os copos estão lá, firmes, o jogo de pratos muito branco da feira escandinava, os seus talheres, a lâmpada que pisca, a torneira amarrada, uma diferença tremenda do hotel de luxo, mas afinal é a sua casa.

    Ainda sobraram massas de macarrão, é que Aninha da Mesa III é tão generosa, toda vez que se compra lá, junta um presente, uma novidade, vai dar para comer um macarrãozinho no
    almoço, de preferência um cabelo de anjo.

    Uma ida ao jardim que não vale mais nada, mas tem sálvia e cebolinha francesa, que graça. O loureiro, não sei como se diz, se pé de louro ou loureiro ou os dois, subiu tão alto que é inacreditável. À procura do sol ele esticou o pescoço, quer furar o céu. E tem aquela receita de macarrão com louro, só com louro, a que não fazemos nunca, mas é tão italiana. Com um azeite dos bons, não vai fazer feio diante das comidas de Itália, não vai mesmo, é para isso que se viaja, para gostar das coisas lá de fora e voltar feliz da vida e adaptar de tudo um pouco, por aqui. Na nossa casa.

    É absolutamente necessário que a cozinha nos defina. Que as infinitas bobagens que compramos vida afora contenham no meio delas aquilo que usamos sempre. Nada como ostras defumadas, trufas dentro do óleo, a língua salitrada. Tudo bem, são uma delícia aquelas ovas de salmão, mas, agora, aqui, definitivamente não são as coisas que queremos comer.

    Aqui em casa, não. As panelas são aquelas três que usamos, a frigideira, o caldeirão pequeno, a panela média, o escorredor de macarrão. Estão guardadas lá na parte de cima, são suas, você gosta delas, e tem a faca pequena e a média, bem afiadas. Claro que a colher de pau é a mesma que você elegeu há anos e não faria bonito numa cozinha elegante.

    Essencial é ter farinha de mandioca e ovos. Tomate bem pouco, não é seu forte. Aqui e agora já temos a massa da Aninha, o louro, as ervilhas, os ovos. O azeite é bom, talvez pior do que o azeite da Toscana, mas ninguém vai notar.

    Enfim, chegamos, a mesa é nossa, os paninhos de prato meio puídos são nossos, o fogão, seu antigo servidor Viking, já consertado, dá um prazer tão grande, um sentimento de estar de volta aos seus pagos, ao seu lugar e tudo que viu na viagem começa a formar um álbum de boas lembranças, mas o seu lugar é aqui, naquela cozinha mambembe, enfim, sós.

    nina horta

    É escritora e colunista de gastronomia da Folha há 25 anos. É formada em Educação pela USP e dona do Buffet Ginger há 26 anos.
    Escreve às quartas-feiras.

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