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    Nina Horta

    'Delivéri' no sofazão

    02/12/2015 02h00

    Ainda não consegui recomeçar a escrevidão. Não queria indicar um livro muito difícil para nós, que entediasse e daí parássemos de vez, porque livro chato ninguém merece. Os livros em geral são americanos, os mais romantizados, pelos quais nós cozinheiros poderíamos começar a leitura.

    Já li muitos, a começar de menina com A Cabana do Pai Tomás e Huckleberry Finn. Depois, com o tempo, há muita coisa boa em inglês, então! Mas há os nossos e os traduzidos, com certeza.

    Os de Faulkner são bons, mas complicados, já exigem de nós, leitores, uma certa paciência e tempo. Dos de receitas eu me encarrego, tenho uma boa coleção, posso pescar o que há de melhor e passar adiante para o leitor. É bom comparar com as nossas comidas, porque lá fora os escravos se saíram com um tipo de comida e nós aqui com outras. Acho que uma boa conselheira pode ser a Neide Rigo que se manda para as Áfricas de vez em quando ensinando e aprendendo.

    Pois é, prometo que na semana que vem já recomeço tudo o que estava fazendo nos blogs. O que está mais perto de mim nesse fim de semana é a pizza, é a galinha assada, a farofa, comida de fim de semana, de "delivéri", como diz o pai da Adriana Gallinari, nossa artista mor, que se dobra de rir só de pensar. Aquela pizza "delivéri" que pedimos em casa, exaustos do dia, dia de não fazer nada. Os filhos estão chegando? "Delivéri" neles. Vocês não vão acreditar, tenho uma nora que faz a comida em casa e traz para os preguiçosos de plantão. Quanto tempo durará essa generosidade? Sempre tremo nos alicerces pensando no dia em que ela se rebelar. Vamos então ao delivery do seu bairro, vou contar do meu e espero que o de vocês não se equipare a ele.

    Primeiro, poderia ser um pouco mais barato, já que é ruim.

    Mas tenho cá mais queixas.

    Primeiro, que a pizza muitas vezes chega amarfanhada, dobrada, amassada. Escorrega. São as curvas da estradas de Santos? Eles até trocariam, mas já imaginaram o tanto que vai demorar para chegar de novo? Melhor é abrir com a mão e comer assim mesmo, mortos de raiva.

    E tem o frango assado. Quase bom. Lá, no restaurante, deve estar no ponto. Mas deixam um poucochito mais e endurece. Fica duro pra burro, seco, pode quebrar os dentes e muitas vezes quebra. Sem comentários é a farofa. É fria. É velha. E, às vezes, muito de vez em quando, está quentinha e amanteigada –geralmente numa segunda-feira. Olé, quer dizer que eles sabem fazer, só não têm tempo ou não querem.

    O que as pessoas fazem? Misturam o vinagrete com a farofa, e, acreditem, num dia que perguntei no Facebook o prato predileto de todo mundo era vinagrete com farofa, logo é o que estamos acostumados.

    E as batatas fritas? São como num filme de Hitchcock, são como ganhar na Sena, um susto, um mistério. Podem estar boas, uma vez por ano, e o resto do tempo todo o mundo sabe.

    Bem moles e pretas na beiradas, sinal que foram fritas duas vezes. Ou, só bem moles, nem fritas duas vezes. Você pode recorrer à batatinha palha, mais segura, mas acontece que não combina com o prato que pediu.

    E o refrigerante que esqueceram? Será que o menino volta para buscar? Vai demorar horas, deus o livre. Alguns restaurantes mandam o cara comprar na padaria da esquina, vale mais a pena.

    Tem uma sobremesa, que com certeza ele encomendam de alguma portuguesa que é o pastel de Belém. Se foi feito e entregue naquele dia nem em Belém tem igual. Se despedaça em flocos, a massa é boa, o recheio delicioso. No dia seguinte já é um chiclete sem graça.

    E tem outros pratos, estrogonofe, bife à milanesa e todos são ruins e pedidos há milênios, o restaurante deve ter uns 30 anos.

    Agora, me contem. Culpa deles ou do bairro, culpa deles ou nossa? Claro que mais nossa do que deles. Se alguma vez fizéssemos voltar tudo, se não pagássemos pelo ruim, só aceitássemos o bom? Ele estão confortáveis, alegres, tudo que fazem é aceito, devem ser o melhor restaurante de São Paulo a contar pela reação dos clientes. As bestas somos nós. Ou nos acostumamos com aquela comida dos infernos e gostamos dela, ou somos pessoa sem paladar, sem vontade, acomodadas com o ruim, isso é que somos.

    Vamos reagir, o que vai ser bom para o restaurante e para nós, ou continuamos nesse sofazão assistindo o Fantástico e ruminando o que o diabo quer que a gente coma?

    nina horta

    É escritora e colunista de gastronomia da Folha há 25 anos. É formada em Educação pela USP e dona do Buffet Ginger há 26 anos.
    Escreve às quartas-feiras.

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