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    Nina Horta

    A metade do sol amarelo

    23/12/2015 02h00

    Combinamos indicar um livro acadêmico sobre os negros e um romance de cada vez. E misturamos ao assunto o cultivo do arroz. Vários autores, nas pesquisas acadêmicas, sugerem que o europeu, que levou o arroz africano para as Américas, se esqueceu de contar que foi o negro que o ensinou a plantar, colher e processar o cereal, básico na alimentação tanto na África como nas Américas.

    Uma das leitoras, Maria da Conceição Oliveira, sugeriu a leitura de um romance, "Meio Sol Amarelo", de Chimamanda Ngozi Adichie. A novela se passa na Nigéria, há 40 anos, e os personagens são duas irmãs gêmeas, Olanna e Kainene, da elite igbo. Olanna se torna amante de Odenigbo, um intelectual, professor da universidade, e Kainene casa-se com Richard, um inglês tímido e cheio de princípios, candidato a escritor.

    Outra vida que a autora esmiúça é a do empregado faz-tudo do professor universitário, filho de uma aldeia pequena, rural e pobre. Com 13 anos ele se incumbe da casa do professor e vai aprendendo todos os misteres de um criado com muita fidelidade, mas sem jamais se esquecer de sua família, principalmente da mãe.

    Como falamos em arroz nos outros artigos, prestamos atenção ao assunto, pois o menino aprende a cozinhar quase sozinho e depois com a mulher do patrão. Por acaso, a comida comentada é sempre o arroz. No dia da chegada da nova patroa o menino, para agradá-la, quer fazer o arroz frito que lhe pedem, mas, sem ter alguém para ensiná-lo, faz um arroz muito engordurado. Mais tarde, carinhosamente ela ensina outras receitas e modos de cozinhar.

    No correr do livro vemos sempre menção de arroz em várias modalidades. Quando se fala em comida, fala-se em arroz. O menino apresenta suas especialidades, por exemplo, um arroz feito como fazemos aqui, o grão refogado e cozido na água, mas em vez de água é usado um molho de tomate.

    Tem uma pequena horta onde escolhe ervas que dão um gosto especial ao arroz de todo dia, e num capítulo vemos que naquele dia a comida é arroz, simplesmente arroz.

    O romance vai tratar da Nigéria, principalmente em 1967, ano do começo da guerra de Biafra que se trava entre as forças muçulmanas do norte contra os igbo cristãos do sul, que tentam se separar da Nigéria depois de um horrível massacre de seu povo.

    A guerra de Biafra tomou conta da imaginação de vários escritores africanos, dos mais talentosos, pelo menos. Adichie não viveu essa guerra, mas alguns de seus parentes sobreviveram a ela e isso a marcou, pois a história moldou sua imaginação com muita força.

    No primeiro livro de ficção que comentamos o autor descreve o medo que mora no coração do negro de hoje, americano, dos Estados Unidos. O medo de morrer, o medo que traz dentro de si e que o faz ter rituais no seu comportamento para sobreviver.

    Nesse livro de Adichie ela também mostra na guerra uma crueldade na qual as pessoas inadvertidamente se tornam cúmplices.

    Uma crítica do jornal "Guardian" chama a atenção para o fato que alguém vindo da Polônia, do Líbano, da Guatemala, do Afeganistão ou de quase qualquer país do mundo não faz ideia do futuro, ou melhor, não espera que o futuro se assemelhe ao passado, que tenha continuidade, Só os americanos têm dentro de si a ideia que sabem qual será o futuro do país. Para os outros essa ideia de continuidade não existe, e passa por um profundo dilaceramento numa guerra que rompe os pequenos e fortes laços do cotidiano.

    Nas reuniões na casa de um dos protagonistas da história, o professor nigeriano, muito se fala da África pós-colonial, do seu futuro. O dono da casa, Odnegbo, defende um tipo de governo africano, a tribo; e os amigos da casa defendem o pan-africanismo ou nacionalismo. Diz ele: "a única identidade autêntica para o africano é a tribo. Eu sou nigeriano porque um homem branco criou a Nigéria e me deu essa identidade. Sou negro porque o homem branco criou, construiu o negro para ser o mais diferente possível do branco. Eu era igbo antes que o homem branco surgisse".

    Há uma acusação clara de que houve uma influência ocidental na guerra de Biafra, um envolvimento inglês, mostrado através do personagem Richard, que, apesar de suas boas intenções, sua fascinação com a cultura e seu desejo de ser parte de Biafra. Tenta escrever dois livros sobre o assunto, mas não consegue, porque, diz ele, as histórias não são suas. Mesmo suas reportagens para o Ocidente que ajudam a guerra de Biafra levam à conclusão que talvez fosse melhor que os próprios africanos escrevessem sobre a África. 

    A indicação da leitora é boa. O livro é um romance interessante, meio ficção, meio histórico, nos prende a atenção, e nos faz entender melhor a alma africana.

    nina horta

    É escritora e colunista de gastronomia da Folha há 25 anos. É formada em Educação pela USP e dona do Buffet Ginger há 26 anos.
    Escreve às quartas-feiras.

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